11deJulho

tendências, souvenirs, beijos esparcidos aos precipícios dessa coisa rugosa que muitos chamam amor, solilóquios, colóquios, provocações e invectivas, enfim, de tudo um pouco, daquilo que sou

Monday, November 21, 2005

A Pós-Modernidade na Europa

Traçamos aqui uma brevíssima panorâmica em torno ao debate sobre a Pós-Modernidade na Europa, ou seja, desde logo, analisando autores europeus. Escolhemos, mais exactamente, três nomes que nos parecem capitais para esta disputa: Jean-François Lyotard, Gianni Vattimo e Zygmunt Bauman.

A relevância e a pertinência de perscrutar a visão europeia sobre a Pós-Modernidade prende-se com várias ordens de razões, algumas que seguidamente deslindaremos. Primeiramente, e desde logo, pelo facto do debate sobre a Condição Pós-Moderna ter emergido num contexto europeu, já que se move de um conceito introduzido na esfera da Filosofia e das Ciências Sociais e Humanas pelo pensador parisiense Jean-François Lyotard[1].

Embora a controvérsia se tenha espraiado depois, e celeremente, à escala mundial, sobretudo ao Continente Americano, onde também tem sido concebida abundante e significativa produção intelectual sobre o assunto, esta ínclita e inegável origem da discussão sobre a Pós-Modernidade no Continente que habitamos confere, ao nosso aviso, legitimidade para indagar sobre uma eventual especificidade da situação e/ou do pensamento pós-moderno europeu, ou pelo menos, para localizar e aferir qual o vigente estado da questão, digamos, como tem evoluído – ou eventualmente estagnado – esta confrontação entre os intelectuais da Europa sobre um tema tão assumida e demarcadamente contemporâneo.

De resto, importa-nos também questionar que, se a «Modernidade» é, ou foi, uma invenção de europeus, e um desiderato assinalavelmente europeu, então, designar de «pós-moderno» um cenário histórico, um contexto civilizacional, ou mesmo que somente um movimento ou um conjunto de ideias inovadoras, provocativas, reivindicativas ou iconoclastas, envolve também um posicionamento sobre a Europa, até aqui impulsionada pelos ideais «modernos» que nela nasceram e averiguar da sua actualidade ou fracasso, de rotura ou continuidade, possibilidade de resgate ou definitivo encerramento e ultrapassagem - pois é evidente que o uso do termo «pós-moderno» se refere habitualmente às ideias de superação, contracção, reprovação ou negação da Modernidade, conceito que, reiteramos, implica também uma certa relação com, ou mesmo concepção do chamado Velho Continente.

O mesmo é dizer que dispõe de toda a naturalidade, ao que se nos aparenta, reclamar uma relação intestina entre Pós-Modernidade e Europa, uma Europa que, na ressaca da devastação em grande medida auto-infligida através da II Guerra Mundial, se viu (e se vê ainda, eventualmente), pelo menos em boa parte dos seus sectores sociais, agentes e forças vivas, obrigada ou constrangida a repensar-se nos seus valores, na sua identidade, no seu projecto - se é que se pode falar nestes termos, o que também é uma questão sucedânea mas com o seu justo relevo.

Arremetendo por outra vertente, mas a estes mesmos motivos conducente, pretendemos identicamente seguir a intuição e a imperatividade de pensar a Pós-Modernidade na Europa porque cremos, cada vez mais, que a Filosofia deve reflectir e debruçar-se sobre a realidade que nos rodeia, sobre a nossa época, os enfrentamentos e os problemas que desperta e se nos colocam no nosso presente. Enfim, que é sua tarefa e mister meditar sobre o nosso tempo actual, que é também o nosso espaço, onde nos movemos, vivemos e somos[1].

Ora, esse espaço é a Europa, como grande território transnacional por cujas fronteiras podem circular, de forma mais ou menos livre, as pessoas e os bens - e acrescentaria: as ideias, as modas, os estilos de vida, as tendências culturais. A democratização dos meios de transporte[1], a autonomia, instantaneidade e continuidade comunicativas que permitem as actuais tecnologias, tal qual a proliferação de programas escolares e pré-laborais de intercâmbio e a sua relativa facilidade de acesso[1], são factores que motivam hoje as novas gerações dos diferentes países a interagirem maiormente e a conhecerem-se melhor, daí resultando uma depuração da consciência das nossas diferenças, mas também das semelhanças que nos ligam e unem.

Com efeito, é indiscutível, a Europa, conhece hodiernamente um período notável da sua cultura urbana, cada vez mais forte, vívida, aberta, criativa, miscigenada, interactiva e transversal, no seio da qual a juventude, o sexo feminino, as minorias tradicionalmente desclassificadas e repudiadas, reclamam direitos e exercem um protagonismo crescente, descentrado e poliédrico. Ao mesmo tempo, porém, em vários países vence o «não» nos referendos sobre a Constituição Europeia, crescem movimentos que pretendem controlar a imigração e repor fronteiras, o terrorismo infiltra-se e difunde o medo e o pânico nas grandes metrópoles. Bem rubricava Lyotard, portanto, há quase um quarto de século, que a transição entre a Modernidade e a Pós-Modernidade consta no seu cerne de um problema de «legitimação».

Legitimidade, porque cabe saber se o projecto de construir uma Europa unida (que não necessariamente única) é uma ideia que está de acordo com o pensar, o pulsar e o sentir das gentes europeias de hoje em dia, ou é um último grande modelo utópico moderno, com demasiada ênfase nos aspectos económicos e políticos, excessivamente técnico, desumanizado e burocrático, e que por estas razões afinal resulta desfasado e colide com as vivências e as aspirações reais da população.

Reformulando a questão: são os nossos políticos e as instituições onde têm assento que vivem o afã de um projecto «pós-moderno» no qual boa parte da população europeia não se revê - porque não está preparada e tem receios antiquados?; ou é outrossim o projecto político que não encontra eco na sociedade civil, hoje mais activa e avançada que nunca, porque se afigura inadequado ou não está à altura ou das suas pretensões, necessidades e anelos?

Dada a premência com que nos requerem estas questões, meditar a Pós-Modernidade é, logo, pensar igualmente o que é ser europeu hoje, em tempos de globalização e resistência, conflitos e tolerâncias, convivência de discursos e práticas, coexistência de valores plurais e disseminados.

Por isso também a nossa proposta de investigação contempla a discussão das teses de dois autores que estão ainda vivos[1], e não podemos dizer que Lyotard tenha falecido assim há tanto tempo[1].

Lyotard e a Condição Pós-Moderna

Resgatando um termo que já circulava anteriormente, primeiro pelo terreno da arquitectura, depois de forma geral no contexto da artes, Jean-François Lyotard introduziu no final da decáda de 70 o termo «pós-moderno» e suas derivações, no campo da Filosofia e das Ciências Sociais, referindo-se ao estado da cultura, das ciências e das práticas discursivas e de saber.

Lyotard pretendia caracterizar com esta categorização as transformações que afectaram as regras e a estrutura da ciência, das artes e da própria sociedade, numa configuração que veio ganhando forma a partir do Século XIX, mas que sofreu decisiva inflexão após a II Guerra Mundial. De facto, a mortandade e a destruição que se levou a cabo no conflito, conduziu, no Ocidente, a um descrédito pungente relativamente aos «relatos», ou seja, às grandes ideologias, que, de certo pelo menos em parte, funcionaram como detonadores da beligeração.

Esses discursos ou narrativas eram, ou foram, prototípicos da modernidade europeia: o relato da Luzes, a emancipação do Sujeito, a dialéctica do Espírito ou o Materialismo histórico, etc. As grandes doutrinas filosóficas constituíam discursos de legitimação para as práticas científicas e culturais, orientadas pelo fito político de solucionar racionalmente os clássicos problemas da desigualdade social e alcançar a paz perpétua, a civilização no seu estado derradeiro, perfeito e harmónico, em suma, o «fim da história», terminal e teleológico.

A Modernidade, assim sendo, pode definir-se como esse período da História, europeia ou humana, em que se assomou a emergência do sujeito racional, pretensamente independente da Natureza, em posição sobranceira e arrogante face ao mundo e às coisas que o rodeiam, e que procura dominar através do desenvolvimento da investigação científica e de uma técnica instrumental. Inicialmente, este processo veio fundado na dúvida metódica e na crença da bondade da economia divina. Mas uma vez caída a teodiceia, os modelos teóricos começaram a alicerçar-se numa postura ou interpretação teleológica do curso dos feitos humanos, que, uma vez detectado conscientemente, conduz ao optimismo e à crença no advento cercano de um futuro melhor e mais justo para todos os homens, no qual a política e a ciência jogam em conjunto um papel libertador. Desta forma nasciam as ideologias modernas.

Acabadas as Guerras Mundiais, contudo, as novas gerações alertaram para a crise e eventual esgotamento destes modelos, que afinal encaminharam os países e os povos aos confrontos militares e ao colonialismo expropriador, sem nunca terem propriamente resolvido as iniquidades e os desníveis sociais. Deste anseio de repudiar ou superar a Modernidade nasceu a denominação de origem «pós-moderno» e suas filiações habituais, que, como já aflorámos, têm no seu cerne o descrédito face às metanarrativas e à suas formas de legitimação.

A Pós-Modernidade, se a vivemos, é pois um tempo de esperanças e contradições. Sem dúvida, apresenta-se como uma era de abertura, aprendizagem de diferenças, tolerância, coexistência de discursos e práticas. Convivemos na encruzilhada de elementos linguísticos, narrativos e pragmáticos plurais, descentrados, cambiantes e instáveis, mas heterogeneidade e mutabilidade também podem ser sinónimos de indeterminação, desajuste, fragmentação e relativismo, que se reflectem no decréscimo da qualidade da comunicação, na falta de rumos e valores perduráveis, na ausência de lógicas prevalecentes e de continuidade, que desencadeiam angústias e conflictividades.

Os Estados e as instituições têm que lidar com o descrédito e as exponenciais reivindicações dos cidadãos, bem como com o crescente poder das multinacionais. O capitalismo tende a tornar todos os objectos, incluindo a cultura e o saber, em mercadorias, com valor de troca e não finalidade interna, na roda viva da produção e do consumo. Mas apesar de tudo, a sociedade civil pode reclamar-se vicejante, dinâmica e influente, com as suas organizações não governamentais, grupos de interesse e outras formas de associativismo e activismo.

A sociedade é linguagem e o indivíduo não deixa de estar em rede e em redes, com o que estas dispõem e providenciam de autonomia, flexibilidade e inventividade. Por isso, os jovens, as mulheres, as minorias étnicas e de orientação sexual, invocam os seus espaços e os seus direitos à participação cívica e pública, ao mesmo tempo que são responsáveis por produções culturais próprias, originais e alternativas. O panorama das artes, portanto, regista um momento inédito na história, enjeitando paradigmas únicos e modelos rígidos, e adoptando, ao invés, a pluralidade, a experimentação, a inovação e a miscigenação constantes.

A Pós-Modernidade cifra-se, logo, como um tempo de crise, pelo paradoxo da sua saturação e carência simultâneas, mas também se impõe, como nos exorta Lyotard, maravilhar-nos ante a variedade e o fluxo das novas classes discursivas, gozar dos seus horizontes de liberdade e escolha, seguramente mais amplos que em outras épocas - e também lugares, se seguirmos a intuição primeva de centrar o nosso estudo na realidade europeia actual.

Vattimo, ou o Optimismo Europeu

A escolha de Gianni Vattimo como um dos autores principais desta pequena pesquisa sobre o Pensamento Pós-Moderno Europeu, prende-se notoriamente com vários motivos, conquanto se possa facilmente detectar articulações entre si. Desde logo, porque se trata de um dos mais destacados pensadores das temáticas pós-modernas, sendo um autor que se tem mostrado particularmente activo nos últimos anos, através da publicação de numerosos livros de ensaio e artigos em revistas, jornais e outros formatos.

Por outra parte, Vattimo não só é um pensador europeu, como é assumida e assomadamente europeísta, tendo inclusive já exercido funções de eurodeputado: ou seja, é alguém que realmente se preocupa e envolve no processo da construção europeia, onde, entre outros assuntos e afazeres, se ocupou pessoalmente dos programas de intercâmbio Socrates e Leonardo, dos direitos dos animais e da promoção da inclusão das minorias[1].

Buscando uma ligação com o autor que antecedentemente abordámos, Vattimo foi igualmente um grande divulgador da obra de Lyotard, prefaciando algumas das traduções publicadas em Itália do filósofo de Versalhes. O ex-deputado europeu foi também um dos autores que se prontificou a redigir um epitáfio aquando da morte de Lyotard, que mereceu publicação no jornal francês Libération[1].

Por fim, Gianni Vattimo, pelo seu carácter, percurso e pensamento, é ele mesmo uma viva personificação do pós-modernismo, pelas aparentes tensões das suas escolhas e do seu itinerário: apesar de nunca ter deixado de reconhecer-se, abertamente, como religioso e cristão confesso, é um activista dos direitos dos homossexuais e de outras minorias discriminadas, já foi candidato a cargos políticos pelo Partido Comunista, e os filósofos que mais admira são Nietzsche e Heidegger, sobre os quais detêm estudos importantes.

Em suma, este filósofo oriundo de Turim, desde há muito que dedica atenção aos problemas da pós-modernidade desde o ponto de vista teórico-especulativo, como também lhe nutre intervenção e apelo continuados no domínio político e prático. Gianni Vattimo é pois um entusiasta da Europa e do Pós-Modernismo, da sua ligação embrionária, ideólogo da sua gesta e causa, agente dos seus processos políticos, activista das suas virtualidades de sentido e ser.

São dados que desde já nos oferecem um horizonte de configuração para a aproximação ao seu pensamento, optimista e progressista no que toca à Pós-Modernidade na Europa. Vattimo move-se nos meandros da ontologia e da hermenêutica contemporâneas, e, seguidor do criticismo radical tecido por Nietzsche e Heidegger, sustenta uma interpretação positiva da debilitação das categorias tradicionais da metafísica. Este assim chamado pensamento «débil», redução ou superação do dogmatismo e das suas formas contíguas de violência e injustiça, é a condição para todo o esforço emancipatório, e o passaporte para transfigurar o olhar sobre o mundo, que não aparece estático e definido nas suas entidades e substâncias, na sua ordem rígida e invariável, senão aberto à liberdade e à mudança, ao devir próprio da temporalidade, a uma existência humana real, física e corpórea, que transcorre entre a linha subtil que divide a vida e a morte.

Para além da dimensão mais individual e existencial, conjuntural e historicamente, esta tendência reflecte-se na secularização da vida gregária, na transição gradual a regimes políticos democráticos, propensos ao pluralismo e à tolerância, na senda de uma sociedade mais «transparente», uma comunidade em que já não há perspectivas totalizadoras, hegemónicas ou privilegiadas, e que, contrariamente, favorece as «aventuras da diferença», a pluralidade e a coexistência de padrões, práticas e pontos de vista diversos. A paisagem da Pós-Modernidade caracterizar-se-ia, por conseguinte, pelo abandono dos paradigmas da unicidade dominante e autoritária e a sua substituição por multiplicidades débeis, isto é, mais ou menos conscientes da sua relatividade, contingência e deveniência, mais consentâneas com o fulcro da democracia, e das suas práticas de diálogo em liberdade, nas suas dimensões construtivas, participadas e enriquecedoras do indivíduo e do todo social.

A base ética e política desta nova sociedade consiste na assumpção do respeito pela liberdade dos demais, e na resistência face a normatividades que se pretendem naturais ou inclusivamente sobrenaturais, mas que apenas fomentam a ignorância, a submissão e a discriminação da diferença[1]. A reapropriação do cristianismo e do socialismo, como valores profundos e úteis para a constituição da sociedade actual, descentrada e aberta, marca também o nó de chegada da Europa pós-moderna, isto é, da mobilidade, do intercâmbio, do diálogo profícuo e da edificação comum mas partilhada e não determinada por um poder superior.

Nessa direcção adveio a sua obra mais recente, Il socialismo ossia l’Europa (2004), onde explana o significado e as possibilidades de futuro do processo de construção e integração continental, sob a égide de um programa de esquerda. Segundo o autor, a identidade da Europa passa hoje sobremaneira pela afirmação de um modelo de solidariedade social transversal, abarcando os diferentes estractos, classes e gerações, ou seja, abraçando todas as vozes e não um arquétipo unidimensional, mas também forçosamente pelo contrapeso à hegemonia planetária dos E.U.A., e que rebata o capitalismo selvagem e paternalista como única solução válida para a definição da ordem internacional.

Bauman, áugure do descontentamento

A escolha de Zygmunt Bauman para terceiro autor condutor do veio da nossa investigação a desenrolar durante o próximo ano lectivo pode parecer à primeira vista não tão feliz nem enquadrada como a de Gianni Vattimo, dado tratar-se de um especialista oriundo do campo da sociologia. No entanto, tal objecção afigura-se precária, se pensarmos ter existido sempre um vínculo úbere entre a filosofia e a investigação sociológica, praticamente desde a origem desta disciplina no século XIX, sendo, além do mais, que esta ligação tem sido amplamente reatada nas décadas mais recentes, através de um grande influxo teórico e crítico, e mesmo especulativo, que tem matizado uma parte importante da produção da sociologia, tanto no espectro continental, como com grande relevância no mundo anglo-saxónico[1].

De resto, é o próprio Zygmunt Bauman que lucubra e ressalva a importância desta relação fundamental entre as áreas contíguas da filosofia e da sociologia[1]. Muitos dos seus textos dispõem e articulam temáticas e conteúdos admitidamente com ressonâncias ou implicações filosóficas[1], publicou identicamente estudos sobre pensadores conotados com a filosofia[1] e, por outro lado, também dedicou imensos artigos e ensaios à defesa teórica de uma sociologia empenhada desde os pontos de vista hermenêutico e crítico[1]. Por fim, não é nosso propósito, em momento nenhum, perfilar uma linha de investigação teorética nem metodologicamente fechada, mas outrossim entreaberta e receptiva, o que significa que os contributos pluri e interdisciplinares nos resultam – ou poderão em princípio resultar - benvindos e proveitosos.

Polaco, de família judia, sofreu na pele as perseguições nazis e as purgas estalinistas contra os hebreus. Personalidade de uma coragem e persistência admiráveis, sobremaneira, Bauman é por direito próprio um dos autores mais destacados no que respeita à reflexão sobre a Pós-Modernidade, com copiosa bibliografia publicada sobre a matéria e temas circundantes. E apesar da sua idade avançada, o Professor Emérito de Leeds é um autor prolífico e altamente activo nos últimos anos, como atestam os dez livros de fôlego editados nos derradeiros cinco anos[1].

Ultimamente, também em favor da verdade, Bauman tem vindo a tentar erradicar das suas obras o termo «pós-moderno» e seus derivados, tendendo a substitui-los por conceitos como a «modernidade líquida» e aparentados. No entanto, esta inflexão terminológica pelo «Líquido» como categoria teorética pode interpretar-se como a busca e aspiração legítima de um autor ilustre por desembaraçar-se das modas intelectuais e forjar o seu próprio quadro conceptual, numa altura em que o seu reconhecimento mundial está a plenificar-se e não admite contestação.

Na realidade, a forma como nas obras recentes Bauman analisa a questão da «liquidez» ou «liquefacção» da sociedade, das relações humanas, dos códigos, valores e atitudes[1] pode perfeitamente enquadrar-se na senda da análise e observação da Pós-Modernidade. De facto, o autor pretende designar por «líquido» a maior fluidez e dinâmica dos processos sociais e dos relacionamentos humanos, a contingência e a permutabilidade dos princípios e axiomas do mundo contemporâneo, a ausência de configurações e paradigmas estáveis e estácticos, menos duradoiros e imperativos, mais descentrados e ambivalentes. Isto é, o «líquido» opõe-se ao «sólido» sensivelmente nos mesmos critérios ou aspectos que o «pós-moderno» se contrapõe ao «moderno»[1].

Simplesmente, Bauman distancia-se de uma leitura tipo vattiminiana - que poderá incorrer, pelo seu perfil denunciadamente apologista e entusiasta, nalguma ingenuidade ou excesso optimista. O pensador polaco, de sua vez, não se priva de crer na incorruptível tarefa emancipatória das teorias e ciências sociais, mas adverte que estas passam pela manutenção de um espírito agudo, escrupuloso e incisivo de auscultação e crítica às tendências dominantes, que permita um esclarecimento eficiente e válido sobre as formas delusórias, subtis e latentes de opressão e alienação, as quais proliferam, mesmo num contexto civilizacional aparentemente povoado pela liberdade e a abertura.

Assim, alerta Bauman, a actual conjuntura indicia excluídos e marginalizados, reparte descontentamento, carências e desigualdades. Convoca-nos à atenção que a globalização não é igual para todos – alguns continuam retidos na redes locais do terceiro mundo, encerrados na miséria, injustiça e falta de perspectivas. Enfim, denuncia que o planeta da Pós-Modernidade manifesta também o seu mal estar e desconsolo, as suas bolsas de pobreza e inanidade, e que não podemos pura e simplesmente camuflar e ignorar essa face daninha e pesarosa. Porque mesmo no Ocidente pós-industrializado e das necessidades satisfeitas há dissabores que espreitam: a voragem de um sistema económico que desumaniza os indivíduos e tudo converte em mercadoria de consumo imediato a uma rapidez irrefreável; a fragilidade e precariedade dos laços sociais, familiares e interpessoais revela-se cada vez mais acentuada e inelutável; a moralidade corre sérios riscos de desagregar-se ante o vazio axiológico e os sinais confusos que caracterizam as nossas vivências coetâneas. Assim, enquanto para Vattimo a liberdade é um prémio, para Bauman ela tem antes um preço, ameaçada que se vê pela privatização político-económica, a fragmentação moral e a desintegração social que hoje corroem o espaço público e a estrutura da comunidade.

Finalmente, apontar que Bauman é apesar de tudo claramente um autor preocupado e empenhado com o conceito de Europa e o seu porvir – como demonstra o título Europe: An Unfinished Adventure[1], de prelo bastante recente, e cuja leitura recomendamos, na expectativa certa, quase certeira, de que será grata e fecunda.

As leituras estão aí, em aberto, e, já que os autores que elegemos como guias da nossa pesquisa todos se referem à importância heurística da «aventura», a ela também nos lançaremos em breve no trabalho de comentário e escrita que ressalta do nosso compromisso.

(devido a um problema de formatação, a numeração das notas saiu incorrecta:)


[1] - Falamos, em concreto, da sua obra precisamente intitulada La Condition postmoderne: rapport sur le savoir, originariamente vinda a lume em 1979.
[1] - Nesse sentido, o nosso esforço recolhe alguma inspiração em filósofos como o português José Gil e o catalão Eduardo Subirats, cujas obras recentes, correlativamente, Portugal Hoje. O Medo de Existir (2004) e Memoria y Exilio (2003), encetam uma poderosa reflexão crítica sobre o actual estado da cultura e o cenário de crise social dos seus respectivos países.
[1] - Os caminhos de ferro europeus são sulcados por comboios de interail, ao passo que os céus do continente são rasgados pelas carreiras regulares das companhias de baixo custo.
[1] - Recordo os programas Socrates, Erasmus, Leonardo da Vinci, Faro, etc.
[1] - Pelo menos, à altura em que escrevemos estas palavras, não temos notícia em contrário.
[1] - Óbito registado em Paris, a 21 de Abril de 1998.
[1] - Sobre as actividades políticas de Vattimo, http://www.giannivattimo.it/menu/f_parlamento.html
[1] - Cf. VATTIMO, Gianni. "Une constante référence." Libération (Avril 22, 1998):38 / Obituário a Jean-François Lyotard.
[1] - Neste contexto, é originalíssima a reflexão do filósofo italiano sobre a Encarnação divina como um evento de debilitação, entendendo que Deus abdica da sua transcendência inalcançável, proporcionando-se ao directo acesso dos humanos, e que a mensagem de Cristo pode hoje interpretar-se como um ponto de partida para uma sociedade da tolerância e das decisões compartilhadas.
[1] - Lembramos, por exemplo, os trabalhos de Anthony Giddens e Pierre Bordieu, ou mesmo de um Jürgen Habermas, seguramente tão citado nos Departamentos de Sociologia como nos de Filosofia.
[1] - Leia-se BAUMAN, Zygmunt. "Philosophical Affinities of Postmodern Sociology.", in Sociological Review (August 1990), vol. 38, no. 3, pp. 441-454. O título é já por si mesmo revelador.
[1] - Significativa produção de textos sobre ética, política e inclusivamente estética.
[1] - Quais Walter Benjamin, Emanuel Lévinas e Jean Baudriallard, entre outros.
[1] - A mero título exemplificativo, podemos citar: Towards a Critical Sociology: An Essay on Common-Sense and Emancipation. London: Routledge & Kegan Paul (1976) e Hermeneutics and Social Science: Approaches to Understanding. London: Hutchinson (1978).
[1] - Consultar, no final, a bibliografia recolhida para este autor.
[1] - Entre os seus títulos mais recentes contam-se: Liquid Modernity. Cambridge: Polity Press, 2000; Liquid Love: On the Fragilty of Human Bonds, Cambridge: Polity Press (2003) e Liquid Life. Cambridge: Polity Press, 2005.
[1] - ou também às categorias de «clássico» e «tradicional».
[1] - Cambridge: Polity Press, 2004.

Friday, November 18, 2005

Entrevista com Jean Baudrillard



Entrevista com Jean Baudrillard

A (insuportável) melancolia do ser

Por Alexandre Nunes Oliveira

Aquando da sua recente passagem por Barcelona, para um ciclo de conferências sobre as «Geografias do Pensamento Contemporâneo», tivemos a oportunidade de privar por alguns minutos com o filósofo francês Jean Baudrillard, o grande arauto do pessimismo pós-moderno.
A idade, que começa a ser provecta, presta-lhe um ar de sábio imperturbável, não lhe afectando em nada as conhecidas habilidades retóricas, nem alterando minimamente as suas ideias. Pelo contrário: mostra-se cada vez mais obstinado na convicção de que tudo vai mal no pior dos mundos.
Eis aqui a transcrição da breve conversa, que concluiu com um minúsculo e inesperado testemunho de esperança, confiando as palavras ao coração essencial das coisas.


Pergunta: Na sua prelecção de hoje defendeu a ideia de que o fim da alienação não é uma liberação, como tanto se anseia, mas uma perda ela mesma, porque implica a recusa do ‘outro’...

Baudrillard: É mais - implica a renúncia e a destruição do Outro, o eclipse da Alteridade. Já não somos ameaçados pelo Outro, estamos no plano da totalidade do sujeito – um sujeito sem objecto, que se basta a si mesmo. Pelo menos foi assim que se pensou o fim da alienação, como «a transparência total do sujeito». Mas isso na verdade é uma nova despossesão, porque se faz à custa do extermínio do Outro.

P: O que me está a dizer, portanto, é que o fim da alienação é uma nova forma de alienação...

B: Quero dizer que deixámos de estar «alienados» para passar a estar «super-alienados». E está é a nova forma de terror, o grande delírio pós-moderno, que podíamos classificar como o «neo-indivíduo» - uma micropartícula ligada a todas as redes, numa espécie de delírio da identidade-caos. Hoje tudo está interligado, funcionando em redes. Ora, o indivíduo já nem sequer é um «sujeito»: alimenta-se da religião da performance e da produtividade, do tempo útil, do zapping...

P: Pode, de facto, entrever-se nessa descrição um mecanismo de tipo religioso...

B: É a pior das religiões... é o novo integrismo: o indivíduo «integrado» (socialmente) é aquele que na verdade está «desintegrado» (em si mesmo). Resulta, portanto, não da ‘libertação’, mas da ‘liberalização’... A Liberdade respeita ao espaço simbólico e crítico do sujeito; ao passo que a Liberalização não engendra senão um indivíduo que é uma excrescência patológica, uma mera unidade estatística. Diria mesmo que a divisão do sujeito é a «estatística fundamental»: a imunização do sujeito, dividido, fragmentado, desintegrado.

P: Mas as tecnologias, e as redes de que fala, também podem abrir novas possibilidades, novos horizontes... ou não?

B: Penso que o indivíduo é um falso interlocutor da máquina. O sistema – rede ou net – não tem princípio nem finalidade, o seu efeito é narcótico, é a interactividade em circuito fechado. Veja: o computador é diferente da máquina de escrever, pois esta era totalmente exterior ao sujeito, ao passo que em frente ao computador nos tornamos um ectoplasma do ecrã e da máquina.

P: Ou seja, face ao tecnológico e ao virtual, não temos defesa, somos como espectros, desalojados de nós mesmos...

B: São as evidências da crise. As máquinas só produzem máquinas, logo, enfrentamo-nos a uma maquinização tecnológica do humano, tornado máquina também, mecânica e maquinalmente dominado pela ilusão de «liberdade mental» da rede/net, pela vertigem da interactividade, pelo fantasma da performance ideal... Isto afectou inclusive a sexualidade, que por isso se tornou pornográfica e maquínica. Mas é no fundo uma sexualidade frágil, incerta, confusa. Estamos à deriva, erraticamente. É o princípio da incerteza, o pânico moral da indistinção.

P: É realmente um cenário de profunda crise, aquele que diagnostica...

B: Crónico... e «clónico» - porque a clonagem está aí cada vez mais presente. É um tempo de Melancolia do ser. A fragmentação e fractalização, bem como a diáspora mental pelas redes, são próprias de uma sociedade narcísica, a sociedade da cirurgia plástica. A mundialização, realidade da totalização virtual, integrada e integral, provoca um tipo de promiscuidade total connosco mesmos: uma colagem do eu, imerso e devorado pelo visual. O audiovisual devora o celular, a própria célula. A net, o vídeo e a realidade virtual são os novos princípios e sintomas do diabólico. A crítica da metafísica tradicional levou à sua denegação, pelo que a modernidade não está definitivamente situável em parte nenhuma. Perdeu-se uma sociedade e um tempo cujas referências desapareceram.

P: Esse é um discurso altamente propenso à nostalgia. Não poderemos simplesmente afirmar que superámos a modernidade e que estamos em condições de buscar outros caminhos?

B: O pós-moderno sobrepassa o moderno, mas o pós-moderno é tão só uma simulação.

P: Mas não se pode negar que há actualmente uma cultura urbana viva, aberta e cosmopolita. E o cinema, a dança e outras expressões artísticas contemporâneas mantém, embora possivelmente em círculos restritos, a sua capacidade crítica e criativa...

B: A interculturalidade não é senão outra ilusão. E enfim, tudo se tornou estético hoje em dia, mas no pior sentido. O novo teatro reclama o espectador como elemento activo, mas isso equivale a dizer que o espectador morreu. Perdemos o espectáculo para a realidade virtual, que nega o tempo, pois faz com que as coisas possam acontecer instantaneamente e em simultâneo. O tempo deixou de ser circular e ritual para ser linear e infinito, o que acarreta a perda da memória. A informação, por exemplo, já não é verdadeira ou falsa, é apenas verdadeira em «tempo real». Depois esquece-se. É um ultra-espaço de não-verdade. O digital, além do mais, deixa de dar sequência e tenta anular a linguagem: o signo e o valor são desprezados e pulverizados. O mundo actual é operacional, objectivo e sem alternativa.

P: Mas não se pode cancelar a linguagem!...

B: É verdade. A linguagem está no coração das coisas. A técnica é universal porque se abstrai do singular. E precisamente, o que importa não é tanto a subjectividade, mas a singularidade. Esta é um acontecimento, está fora da órbita do sujeito e do objecto. A singularidade faz parte do indivíduo, mas também das coisas - é a sua unicidade.

Alexandre Nunes Oliveira
(Diário do Sul/Universidade Autónoma de Barcelona)


(--------- Sobre Baudrillard---------)

Jean Baudrillard nasceu em Reims, França, no ano de 1929, tendo desenvolvido a sua formação universitária no âmbito das Línguas e Literaturas Germânicas. Inicialmente influenciado pelo linguista Roland Barthes, seria somente a partir do Maio de 68, que, fazendo parte da geração de intelectuais pós-estruturalistas franceses encabeçada por Deleuze, Lyotard, Derrida e outros, começa a publicar títulos com ressonâncias filosóficas e sociológicas, tendo vindo a afirmar-se, nas décadas seguintes, como uma das vozes mais destacadas do chamado pensamento pós-moderno. Crítico incisivo e amiúde cáustico, exprime uma visão pessimista dos tempos que vivemos, dominada pela tecnologia, os media e o virtual, que desbalizam a qualidade das relações humanas e nos prestam uma percepção deformada da realidade.
Membro do Colégio da Patafísica desde e do Centre National de la Recherche Scientifique, Baudrillard foi professor em diversas universidades de Paris, ensinando actualmente na European Graduate School de Valais (Suíça). Entre as suas obras contam-se La société de consommation (1970), À l'ombre des majorités silencieuses (1978), Simulacres et simulation (1981), L'autre par lui-même (1987), La Guerre du Golfe n'a pas eu lieu (1991), Illusion, désillusion esthétiques (1997), L'esprit du terrorisme (2002), entre muitas outras.

Thursday, November 17, 2005

Pequeña nota sobre pintores portugueses de la modernidad

Pequeña nota sobre pintores portugueses de la modernidad

No es que sean decisivos para la historia del arte, pero no dudo que la posición periférica de Portugal les otorga un olvido inmerecido a nivel internacional. Hablo de pintores como Carlos Botelho, Almada Negreiros, Amadeo de Souza Cardoso e Maria Helena Vieira da Silva, de los cuales haré una muy breve presentación.

Amadeo de Souza Cardoso, o la muerte precoce

Amadeo de Souza Cardoso (1887-1918) es seguramente uno de los más brillantes pintores portugueses de todos tiempos. Su muerte prematura, causada por la tuberculosis, cuando tenía tan sólo 31 años, estancó no solamente un talento que todavía tendría mucho a desvelar, como también impidió que su reconocimiento universal se cumpliera.

Amadeo de Souza Cardoso, Brut 300 TSF

Después de iniciar sus estudios artísticos en Portugal, se trasladó con 19 años de edad a una aventura llamada París. Ahí se convirtió rápidamente en amigo de otro joven pintor homónimo: Amedeo, de apellido Modigliani, con quién compartió taller durante un par de años. En 1911 ambos han hecho más que una exposición conjunta en la capital francesa.
Llegado el año de 1913, Amadeo partió a los Estados Unidos para ahí enseñar su obra. Al regresar a Europa, no dejó de pasar por Portugal y presentó dos muestras, una en O Porto y otra en Lisboa. Sus obras fueron muy mal recibidas, recogiendo un profundo menosprecio de la crítica. El escándalo llegó al punto de suscitar confrontaciones físicas entre los (pocos) admiradores de la pintura moderna y sus oponentes rabiosamente más conservadores.
Amadeo fue uno de los pioneros absolutos del cubismo, visiblemente en la línea de Braque y Picasso, aunque haya desarrollado una estética muy personal, imaginativa y con un uso del color de tendencia libre y fauve. Su técnica era apurada, denotando también cierta predilección por la sensibilidad cromática y formal de los Delaunay. Fue igualmente unos de los primeros artistas a utilizar elementos gráficos tradicionalmente no pictóricos - como la caligrafía, textos, poemas o simplemente letras y números -, así como a aplicar nuevos recursos plásticos, como trozos de periódico, madera, metal y otros objetos en sus composiciones.
Poco después de su muerte, París le organizó una gran retrospectiva, muy apreciada tanto por el público como por los críticos. En Portugal, sin embargo, sólo años más tarde se ha reconocido su genialidad y originalidad. La falta de continuidad de su trabajo, sin embargo, llevó su nombre a un injusto olvido.

Almada Negreiros, alma plural

Uno de los primeros entusiastas en Portugal de la obra de Souza Cardoso, de quien al final también se tornó amigo, fue José de Almada Negreiros (1893 - 1970), una de las personalidades más importantes y representativas de la bohemia de Lisboa durante el siglo XX. Su larga longevidad le ha permitido convivir con escritores de la talla de Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro e Natália Correia, además de muchísimos otros intelectuales y artistas. Su esposa, Sara Afonso, también ha sido una destacada pintora modernista.


Almada Negreiros, Retrato de Fernando Pessoa

Almada, un poco a la manera de Jean Cocteau, cultivó al largo de su vida múltiples expresiones artísticas: escribió cuentos para niños, poesía y novelas, piezas de teatro cuyos estrenos él mismo llevó a la escena, además de guiones para cine y colaboraciones en la dirección de películas de ficción y documentales. Realizó escenarios para innumerables espectáculos y trabajó igualmente como arquitecto, decorador e ilustrador para libros de otros autores.
Fundó y dirigió varias revistas de tendencia vanguardista, de las cuales la más famosa fue Orpheu, en la cual también escribía Pessoa. Fue igualmente responsable por innumerables textos de ensayo y manifiestos, como el Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX, lanzado en 1917. Durante la década de 20 vivió en París y Madrid, ciudades en las cuales también practicó el periodismo, como corresponsal. Regresó definitivamente a Lisboa en el inicio de los años 30.
A pesar de su extensa y prolija creatividad, Almada ha mantenido una relación razonablemente pacífica con el Estado Novo (la dictadura de António Oliveira Salazar, coetánea de la Franco en España). En los años 60, cuando su reputación de artista era ya inquebrantable, el gobierno accedió incluso a encargarle algunas importantes obras públicas, como los vitrales de la nueva Aduana Marítima de Lisboa o los murales de la Ciudad Universitaria, también en la capital, que todavía se pueden contemplar ahí.
A nivel pictórico, sus influencias primordiales han sido el surrealismo y el cubismo. Pasó después por un periodo excesivamente picassiano, y culminó su carrera con un cruce entre ciencia, arte y esoterismo inspirado en el eclecticismo de Leonardo da Vinci, pero con timbre propio. Hoy en día sigue siendo una de las figuras más destacadas y respectadas de la cultura portuguesa de todos los tiempos.

Carlos Botelho, pintor de Lisboa

Carlos Botelho (1899-1982) es por antonomasia el pintor moderno de Lisboa. Supo captar su luz y transportarla a las telas, que denotan un expresionismo tardío pero muy personal, invadido por un colorismo fauvista. Además de sus múltiples autorretratos, la ciudad – real y fantástica - es el principal motivo de su obra, la cual, es, por lo tanto, muy autoreflexiva.

Carlos Botelho, Lisboa e o Tejo


Frecuentó la Facultad de Bellas Artes de Lisboa, pero insatisfecho con la tendencia neoclásica ahí dominante, se mudó una temporada a París, aprovechando la amistad de Maria Helena Vieira da Silva y de su marido, el también pintor húngaro Arpad Szenes, que entonces ya residían en la Ciudad-Luz.
El éxito puntual que fue teniendo en algunos círculos internacionales, no ha pasado desapercibido al régimen de Salazar. Y Aunque la pintura de Botelho fuera profundamente individual, desprendida y celebratoria de la vida para encajar con los modelos de la estética fascista, la dictadura intentó aprovecharse de su prestigio, proporcionándole excelentes condiciones de trabajo y invitándole frecuentemente para exponer, en representación de Portugal, en eventos por todo el mundo.
Botelho no se lo desaprovechó y ha gozado de una vida de turista accidental, contactando con los medios artísticos de todo el planeta y granjeando algún reconocimiento, sobretodo en las Bienales de Venecia y São Paulo. A pesar de todo, siempre ha mantenido una vida privada discreta y alejada de la luces del estrellato.

Maria Helena Vieira da Silva, la poética y el espacio

Durante todo el siglo XX, artistas como Aurélia dos Santos, Paula Rego, Graça Morais o la misma Sara Afonso han garantizado que la historia del arte vanguardista portugués no se pueda escribir sólo en el masculino. Pero más que eso: la notabilidad y difusión mundial que ha alcanzado Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) haz con que ésta pintora sea probablemente el pintor más importante del modernismo portugués.

Vieira da Silva, de la serie Bibliotecas

Como casi todos los de su tiempo, fue temprano rumbo a Paris, donde contrajo matrimonio con el artista húngaro Arpad Szenes, compañero de toda la vida. En 1940, constituyendo una decisión totalmente inédita para el Estado Portugués, el régimen salazarista le retira la ciudadanía portuguesa, por temor a que Arpad fuera un espía soviético. Sólo la recupera con la Revolución del 1974, para la cual compondrá importantes pinturas y paneles. Pero gran parte de su vida la pasaría entre la capital francesa y Rio de Janeiro, entonces capital de Brasil.
Su madurez artística arranca con un expresionismo lírico que gradualmente ha tendido a la abstracción espacial, más asumida a partir de los años 50, aunque la figuración nunca haya verdaderamente desaparecido de su pintura. De hecho, algunas de sus obras maestras son aquellas en que se da una transmutación, un conflicto - o una harmonía, según el punto de vista – entre abstracción y representación, al retratar lugares o objetos reales cuyas formas tienen un carácter geométrico muy marcado: rascacielos y visiones lejanas de ciudades y jardines, por un lado, o, por otro, puertas, rachuelas, rejas de ventanas y portones, o también armarios con libros.
Muy famosos, en realidad, se han tornado estos últimos, conocidos como las Bibliotecas – composiciones que pueden ser, efectivamente, abordadas como abstractas o figurativas: podemos detectarles tan sólo líneas e colores mas o menos organizados geométricamente, o bien intuir los contornos de las estanterías horizontales llenas de libros de variados colores orientados en vertical.
Además de esta disolución de fronteras entre abstracción y figuración, fue la noción de espacio que se convirtió en un elemento muy importante de su estética. Muchos de sus trabajos, aunque no especialmente figurativos, mantienen una fuerte dimensión de perspectiva angular y incluso de fuerte dinamismo y de sensación de movimiento. Como ella misma decía: «Procuro pintar algo dos espaços, dos ritmos, dos movimentos das coisas». A nuestros ojos - y tan afortunadamente – lo conseguió.


(comentario realizado en el ámbito del curso Las Vanguardias Artísticas y la Revolución Científica en el Primer Tercio del Siglo XX, con el Prof. Joan Rovira Salès; UAB Abril 2005)

Sobre Roslawez (alias Roslavets)


Tiene como bautismo Nikolai Andreievich Roslawez, que en castellano, al parecer, se translitera más correctamente por Roslavets. Pero en internet es posible buscar con las dos grafías (y todavía por una tercera variación, Roslavetz) que siempre salen resultados.
Ha nacido el 4 de Enero de 1881[1], en Dushatino, una pequeña comunidad rural a medio camino entre Moscú y Kiev. El pueblo hacía entonces parte de Ucrania, pero actualmente pertenece a la región de Bryanskaya Oblast' y es territorio de la Federación Rusa.
Sus padres eran al parecer agricultores y Nikolai empezó su educación musical de forma totalmente autodidacta, después de incitado por un tío que tenía aptitud para varios instrumentos. Luego estudió en Kursk y más tarde en el Conservatorio de Moscú, entre 1902 y 1912. Se graduó con una cantata basada en textos de Byron y que revela que sus modelos en esa época eran los impresionistas franceses.
De acuerdo con la nota biográfica de "Beethoven-Radioemisoras", una web basada en Santiago de Chile, «En dos canciones de fines de 1913, Roslavetz obtuvo un nuevo ordenamiento armónico que no era diatónico y al que él mismo se refirió como técnica de acorde sintético. Hay ciertos paralelos con la armonía de Scriabin, pero el sistema de Roslavets es independiente.»
Según la misma fuente, el compositor «Desarrolló la técnica en miniaturas para piano y hacia 1915 la había convertido en un sistema dodecafónico que abarcaba conceptos del serialismo y simetría. En el Concierto para violín (1925) agregó el principio de grupos de alturas complementarias que formaba series de 12 notas.» Este sistema se parecía al que estaba desarrollando Arnold Schoenberg, a pesar de que Roslavets no conoció las teorías de éste último sino unos años más tarde. Su descubierta del dodecafonismo es pues paralela a e independiente de los progresos del autor de Pierrot Lunaire y Noche Transfigurada.
Durante los años 20, habiendo llegado rápido a la madurez artística, Roslavets se tornó en una de las figuras más destacadas de la vida musical soviética. Fue Director del Conservatorio de Kharkov, trabajó en la editora musical estatal de Moscú, fue editor del periódico Cultura Musical y hasta 1929 perteneció a la Dirección de la Asociación de Música Contemporánea. Al tomar contacto con los trabajos de Schoenberg, escribió los primeros artículos publicados en Rusia sobre el compositor austriaco, refiriéndoselo de forma elogiosa y entusiástica. Esto le valió fuertes críticas institucionales y un conflicto declarado por parte de la Asociación de Músicos Proletarios.
En plena época de purgas estalinistas, y aunque el compositor se asumía convictamente comunista y orgulloso de sus orígenes rurales, el confronto con la ortodoxia bolchevique marcó un célere inicio de la decadencia de su prestigio. Roslavets, también aficionado al periodismo y a la divulgación, se dedicó a escribir artículos teóricos, en los cuales, nuevamente rescatando las citas de la página web chilena: «proporcionó una defensa marxista de una estética de “positivismo musical” opuesta a la idea de una cualidad emocional definible objetivamente. El acto creativo era un momento en el que se ejercía el intelecto humano al más alto nivel, donde se buscaba la realización del subconsciente como algo consciente y una música basada en nuevos sistemas de organización tonal.»
Pero la política oficial no le perdonó el desvío hacía la «música decadente y reaccionaria», por lo cual Roslavets, en el comienzo de los años 30, fue forzado a retractarse públicamente, rechazando los puntos de vista antes sostenidos. Sería en seguida apartado de los grandes centros y obligado a trabajar en conservatorios periféricos, como lo de Tashkent, en el Uzbekistán, donde se instaló durante algunas temporadas, trabajando como director de orquestra. En este periodo, ha escrito oratorios y ballets basados en elementos de la música folclórica de esta región.
Consiguió volver a Moscú en mediados de la década, pero para encontrarse bajo el desprecio de las autoridades oficiales: su música fue ignorada y su trabajo teórico se tornó objeto de descrédito. No logró más que una vida humilde, con esporádicos trabajos de profesor o haciendo pequeñas emisiones radiofónicas. Murió en la capital soviética, en plena Guerra Mundial, el 23 de agosto de 1944, a causa de un infarto.
Con el pasar de los años, su nombre desapareció totalmente de los diccionarios y programas de concierto, tanto en la URSS como en el resto del mundo. Sólo después de la caída del Muro de Berlín fue posible empezar a recuperar la figura, su pensamiento, sus composiciones y su importancia para la historia de la música.
Entre sus principales obras hoy recuperadas existen varias piezas sinfónicas, un concierto para violín, cuartetos, música de cámara, temas para coro, estudios para piano y canciones.
[1] - Según otras fuentes, ha sido el 5 de Enero. Imposible comprobar la fecha.

(comentario realizado en el ámbito del curso Las Vanguardias Artísticas y la Revolución Científica en el Primer Tercio del Siglo XX, con el Prof. Joan Rovira Salès; UAB Abril 2005)

Wednesday, November 16, 2005

Célia Barros – El resultado es el proceso

Retrato de una joven artista a su paso por Barcelona

Célia Barros – El resultado es el proceso

«Según lo que me ponga a hacer surge claramente la figuración o la abstracción ‘pura’. (...) Desarrollé una lucha entre abstracción y figuración, intentando encontrar un término medio entre ambas.» - Célia Barros

por Alexandre Nunes de Oliveira

A pesar de su presencia inspirar tranquilidad, esta prometedora artista plástica portuguesa de 27 años, patenta un espíritu inquieto e irreverente, más dado a preguntas que a respuestas. Actualmente vive en Brasil, hacia donde partió en búsqueda de nuevas experiencias, pero Célia Barros pasó los primeros años del novel siglo en Barcelona, una de las urbes europeas que dispone de los medios artísticos más desarrollados. Rastreamos su evolución artística durante los años que ahí estuvo, dentro de la dialéctica fecunda entre escultura y grabado, deseo y espacialidad, abstracción y figuración, para encontrar, finalmente, el arte en sus dimensiones experimental, dinámica y procesual.


I. Los años de Barcelona

Célia Barros, artista portuguesa nacida en Lisboa hace poco menos de treinta años, dejó en el 2000 la capital de su país para irse al encuentro y abrazo de Barcelona - urbe anclada entre el Mediterráneo y los Pirineos, dividida entre la pasión por la ancestralidad de la cultura catalana y un pulsar indiscutiblemente cosmopolita. Seguramente se trató de una decisión astuta de su parte, o al menos de felices consecuencias, atendiendo a la carencia y oclusión de los medios artísticos en Portugal, y designadamente por sus parcas posibilidades de mercado. Contrariamente Barcelona, sin cualquier duda una de las más estimulantes metrópolis europeas de este inicio de siglo, exhibe otra pujanza y brillo cultural, con un panorama artístico absolutamente vivo, intenso y plural.
La Ciudad Condal es, por tanto, un medio naturalmente más predispuesto a la aceptación de nuevas propuestas – hablando de público, instituciones, compradores y vendedores – y que propicia excelentes condiciones a los jóvenes artistas para el desenrollar de sus ideas, capacidades, inquietudes, energías. Prueba concluyente es que en cuatro años Célia consiguió número igual de exposiciones individuales en lugares públicos de la ciudad. Han sido, por orden cronológico: «Ilustraciones del libro Marranades», en la Cerería; «Litografías», en el Casinet d’Hostafrancs; «Objecte Invulgar», en Casa Elizalde (todas durante 2003); y «Huella y Natura», en las Cotxeres de Sants, ya en el 2004.
Allende, Célia participó en incontables presentaciones colectivas. Acompañar de cerca todas estas muestras nos permite una visión de conjunto de su obra y de su evolución temática y plástica, que es lo que en seguida deslindaremos.
Antes, sin embargo, prestemos guarida a sus palabras: «No considero Barcelona como mi ciudad de adopción, pero sí como la ciudad de primer salto, mi primer intento de romper con los procesos normales. Romper con el habitáculo natural o usual, significa para mí poder romper con muchos raciocinios. Así, durante mi estadía en Barcelona, alquilé varios talleres de grabado porque cada lugar dispone de una organización diferente, a la cual rápidamente me adapto y cuanto más tiempo permanezco en ese espacio más adecuado él me parece. Mudar de espacio de trabajo obliga siempre a cambiar la organización, la metodología, y por consiguiente, el raciocinio, lo que constituye un desafío renovado».

II. Entre Eros y Geometría

No es caso para decir que la vida artística de Célia Barros haya empezado sólo en la capital de Cataluña. Mientras era estudiante en ESTGAD (Escuela Superior de Arte y Diseño de Caldas da Rainha, en la costa central portuguesa) ya había apertrechado su equipaje con la pintura y con una de sus primordiales pasiones - el grabado. Fue esta técnica la que acabó por abrazar de forma más intensa y decidida, a partir de sus estudios en los talleres de la Facultad de Bellas Artes de la Universidad de Barcelona.
Sus obras grabadas se caracterizan por cierto minimalismo cromático, de tensión entre lo claro (un «blanco sucio») y lo sombrío (tonos de marrón, gris y negros). Un contraste que, no obstante, no incide tanto sobre la luminosidad sino sobre la forma - el dibujo y la articulación de contornos. Estas formas vacilan, u oscilan, entre dos búsquedas fundamentales: por un lado, movimientos geométricos que progresivamente se volatilizan y desvanecen. Por otro, la expresión de un mundo erótico poblado de fantasías y relatos personales, con tendencia a la ironía (un estado de espíritu) y a lo grotesco (un recurso plástico).
Célia es consciente de esta dicotomía, que, como veremos, no es mutuamente reductible: «existen dos líneas que definen el desarrollo de mi trabajo: arte / proceso / espacio y sexualidad / cuerpo / humano. Algunas veces estos temas coinciden en el mismo proyecto».
En el primer grupo, naturalmente más propenso a la abstracción, encontramos inicialmente espacios de superposiciones de líneas, laberintos, cuadrados o rectángulos, frecuentemente en perspectivas oblicuas e incluso algo desavenidas. Estas primeras figuras han dado después paso a la entrada (y pesquisa) del color, en tonalidades secas, u ocres, de amarillos, verdes y rojos, así como a la difuminación de la geometría, gradualmente substituida por formas más invertebradas, intangibles, medio fantasmagóricas... En ellas podemos entrever, si queremos mantener algún enlace con la representación, breves volutas de humo de cigarro, radiografías desgastadas o indescifrables apariciones espectrales.
En la vertiente erótica, claramente apostada por la neofiguración, vemos un imaginario de cuerpos invariablemente desnudos, sin pudor de exhibir su genitalidad, la masturbación o la cópula. Tales cuerpos son a menudo presentados de manera sórdida, a veces gateando, otras con la aparición de elementos animales (narices de cerdo, por ejemplo) y más habitualmente con gran desfasamiento de proporciones. Es el caso de las planchas utilizadas en Marranades, su primera muestra, inspirada en el libro Chanchadas, la novela de más éxito de la escritora francesa Marie Darrieussecq (n.1969). «Conocí este texto a través de una obra de teatro del grupo portugués O Bando, una de las piezas de teatro que más me impresionó hasta hoy, y titulada A Porca [La Cerda]. Las ilustraciones están muy influenciadas por la estética de esa obra teatral», explica Célia, que ha visto en esta representación dramática una apertura al mundo de «nuestra faceta animal y androide».
Parece entonces ser con naturalidad, casi como buscando una plenitud, que encontramos también trabajos donde las dos componentes anteriormente referidas – erotismo y geometrismo – se entrecruzan amablemente. Esta tercera vía de mezcla o síntesis podemos ya apreciarla en algunas de las ilustraciones de Marranades: delante de un laberinto blanco y negro, en perspectiva diagonal, vemos cuerpos humanos arrastrándose y coexistiendo con animales. Parecen forjar una invocación a las dimensiones más recónditas de la interioridad humana, a una obscuridad irrespirable y sofocante, a una sexualidad fragmentaria, enfermiza y perversa (o ‘sucia’). Resta saber si hablamos de la naturaleza humana (id o libido) o de la represión socio-cultural (superego).

III. El Curso del Método

A medio camino, en su exposición individual en Casa Elizalde, un centro cultural que no siendo de los primeros, tiene su lugar influyente en el panorama artístico de Barcelona, Célia Barros introdujo nuevos conceptos en el campo de su obra y de la presentación expositiva, a nivel espacial y de conjunto.
De hecho, nos referimos aquí más propiamente a secuencias de obras que a trabajos aislados. Encontramos, por ejemplo, la distribución de varias de las estampas por el suelo, siguiendo un modelo composicional, lo que implica que ninguna de ellas en particular sea obra, en solitario, sino que la obra consiste en todo el conjunto - el conjunto distribuido de una cierta manera, no exento de una (in)cierta arbitrariedad y ocupando ese espacio preciso.
Contamos con la anuencia de la joven artista: «en la exposición de Casa Elizalde, la técnica utilizada es únicamente la calcografía en planchas de hierro. La arbitrariedad es emocional, sensitiva y táctil. Las estampas no estaban enmarcadas, no había ningún tipo de protección o distanciamiento de la obra hacia el espectador. Es más: una alfombra donde te deberías descalzar para que pudieras aproximarte a las estampas y a las matrices tanto como quisieras. La mayoría de estas estampas las guardo como reliquias y no las puedo vender, una vez que están impregnadas de huellas dejadas por los visitantes de la exposición.»
El proceso creativo no se acaba por lo tanto en el acto en que las planchas impresas salen de las maquinarias de grabación. Cada objeto resultante de este primer instante generacional deviene a su vez elemento de otro proceso mayor, ya no sólo ilustrativo, mas instalativo o instalacional: la obra emerge de la agregación de lo que pasan a ser fragmentos, fracciones, mientras tanto rescatados en un nuevo movimiento creativo – y además dinámico, abierto, nunca verdaderamente acabado. Lo que corresponde a decir que la noción de proceso gana relevancia superior en el pensamiento y en la labor artística de Célia.

IV. Por los intersticios de la obra

Llegados a 2005, la predominancia del concepto de proceso – en sus dimensiones pragmática y poética – en la obra de la artista de origen lisboeta, alcanzó ya un avatar de madurez. Eso tuvimos oportunidad de presenciar en sus obras expuestas en una colectiva organizada por la galería Aukan, también en la Condal, en los primeros meses de este año.
En los tres trabajos que nos presentó, había un aspecto constante: las propias placas de grabación, habitualmente no más que un mecanismo utilizado en el taller para la confección de la obra impresa, aparecen elevadas a la categoría de escultura, pasan a tener el estatuto de obra de arte. Persiguiendo fusiones, Célia logró igualmente unir en el mismo trabajo sus dos expresiones favoritas: escultura y gravado, en fructífera comunión, plasmándose recíprocamente en su polifacética amplitud y fiesta de recursos y posibilidades.
En una de las obras, la plancha de impresión, usada, desgastada y oxidada, pendía suspensa del techo, consagrándose en toda su riqueza de experiencia tridimensional a la mirada del visitante. Este elemento que corrientemente no era sino un aparato técnico manipulado para la producción de aquellos objetos que vendrían a ser los verdaderos resultados artísticos, asciende ahora al lugar de lo visible: ya no sirve sólo para hacer arte, sino que él mismo se convirtió en arte.
Las restantes dos piezas, más similares entre sí, estaban fijadas en la pared, en un juego de doble representación: desde un cilindro de hierro, también tradicionalmente y por norma un instrumento de la manufactura de grabado, cuelga un bajo relieve de silicona, como si reproduciera la hoja acabada de imprimir. Además del crudo impacto visual que generan los contrastes y las texturas, la obra provoca un evidente efecto simbólico: lo que se está representando en obra es el momento en que la obra sale de la máquina, o sea, es una clara y sentida evocación de lo estético como proceso y no (solamente) como resultado.
O dicho de otra forma: el proceso es el resultado - lo que es arte se encuentra en todos los momentos de su propia secuencia creativa y heurística, como un descubrimiento, una avenencia, un devenir, perpetuum moto.

V. Palabras finales

Célia Barros vive actualmente en Brasil, instalada en una pequeña comunidad del interior del Estado de São Paulo, donde participa en un proyecto de eco-arte, o arte ambiental, a través de la recogida no agresiva de despojos naturales en las cercanías de Amazonia y su posterior utilización para el montaje de objetos artísticos. El próximo paso, posiblemente ya en marcha, podrá ser la vida como proceso, como pozo inagotable de creatividad.

Alexandre Nunes de Oliveira
(Diário do Sul/Universitat Autònoma de Barcelona)

Célia Barros – o resultado é o processo

Retrato de uma artista enquanto jovem

Célia Barros – o resultado é o processo

«Dependendo do que estou a fazer surge claramente a figuração ou a abstração ‘pura’. (...) Desenvolvi uma luta entre a abstracção e a figuração, tentando encontrar um meio termo entre as duas.» - Célia Barros

por Alexandre Nunes de Oliveira

Apesar da sua presença inspirar tranquilidade, esta promissora artista plástica portuguesa, de tão só 27 anos, patenteia um espírito inquieto e irreverente, mais atreito a perguntas que a respostas. Actualmente a residir no Brasil, onde partiu em busca de novas experiências, Célia Barros viveu os primeiros anos do novo século em Barcelona, uma das urbes europeias que dispõe de meios artísticos mais desenvolvidos. Rastreamos a sua evolução artística durante os anos que ali passou, na dialéctica fecunda entre escultura e gravura, desejo e espacialidade, abstracção e figuração, no encontro, enfim, da arte na suas dimensões experimental, dinâmica e processual.


I. Os anos de Barcelona

Célia Barros, artista portuguesa nascida em Lisboa há pouco menos de trinta anos, deixou em 2000 a capital do seu país para ir ao encontro e abraço de Barcelona - urbe ancorada entre o Mediterrâneo e os Pirinéus, dividida entre a paixão pela ancestralidade da cultura catalã e um pulsar indiscutivelmente cosmopolita. Tratou-se, pois, de uma decisão certamente astuta, ou pelo menos de felizes consequências, atendendo à míngua e oclusão dos meios artísticos em Portugal, e nomeadamente das suas parcas possibilidades de mercado. Contrariamente, Barcelona, sem qualquer dúvida uma das mais estimulantes metrópoles europeias deste início de século, exibe outra pujança e brilho cultural, com um panorama artístico absolutamente vivo, intenso e plural.
Trata-se, portanto, de um meio naturalmente mais predisposto à aceitação de novas propostas – falamos de público, instituições, compradores e vendedores – e que propicia excelentes condições aos jovens artistas para o desenvolvimento das suas ideias, das suas inquietações, do seu entusiasmo. Prova concludente é que em quatro anos Célia conseguiu número igual de exposições individuais em lugares públicos da cidade. Foram elas, por ordem cronológica: «Ilustraciones del libro Marranades», na Cerería; «Litografias», no Casinet d’Hostafrancs; «Objecte Invulgar», na Casa Elizalde (todas durante 2003); e «Huella y Natura», nas Cotxeres de Sants, já em 2004.
Além destas, Célia participou em inúmeras apresentações colectivas. Acompanhar de perto todas estas mostras permite-nos una visão de conjunto da obra de Célia Barros e da sua evolução temática e plástica, que é o que em seguida deslindaremos.
Antes, porém, demos guarida às suas palavras: «Não considero Barcelona como a minha cidade de adopção, mas sim como a cidade do primeiro salto, a primeira tentativa de romper com os processos normais. Romper com o habitáculo natural ou acostumado, significa para mim, poder romper com muitos raciocínios. Assim, durante a minha estada em Barcelona aluguei vários ateliers de gravura porque cada oficina tem uma organização diferente, à qual rapidamente me adapto e quanto mais tempo permaneço nesse espaço mais adequado ele me parece. Mudar de espaço de trabalho obriga sempre a mudar a organização, a metodologia, e por conseguinte, o raciocínio, o que constitui um desafio renovado».

II. Entre Eros e Geometria

Não se dá o caso para dizer que a vida artística de Célia Barros começou já na Capital da Catalunha. Como estudante na ESTGAD (Escola Superior de Arte e Design das Caldas da Rainha), já havia apetrechado a bagagem com a pintura, e com uma das suas primordiais paixões - a gravura. Foi esta técnica que acabou por abraçar de forma mais intensa e decidida a partir dos seus estudos nos ateliers da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Barcelona.
As suas obras gravadas pautam-se por certo minimalismo cromático, de tensão entre o claro (um «branco sujo») e o sombrio (tons de castanho, cinzentos e negros). Um contraste que, contudo, não incide tanto sobre a luminosidade senão sobre a forma - o desenho e a articulação de figuras e contornos. Estas formas hesitam, ou oscilam, entre duas buscas fundamentais: por um lado, movimentos geométricos que progressivamente se volatilizam e se esvanecem. Por outro, a expressão de um mundo erótico povoado de fantasias e relatos pessoais, com uma tendência à ironia (um estado de espírito) e ao grotesco (um recurso plástico).
Célia é consciente desta dicotomia, que, como veremos, não é mutuamente redutível: «existem duas linhas que definem o desenrolar do meu trabalho: arte / processo / espaço e sexualidade / corpo / humano. Algumas vezes estes temas coincidem no mesmo projecto».
No primeiro grupo, naturalmente mais tendente à abstracção, encontrámos primeiro espaços de sobreposições de linhas, labirintos, quadrados ou rectângulos, frequentemente em perspectivas oblíquas e até algo desavindas. Estas primeiras figuras deram depois passo à entrada (e pesquisa) da cor, em tonalidades secas, ou sépias, de amarelos, verdes e vermelhos e também à difuminação da geometria, gradualmente substituída por formas mais invertebradas, intangíveis, como que fantasmáticas... Nelas podemos entrever, se quisermos manter algum enlace com a representação, breves volutas de fumo de cigarro, radiografias desgastadas ou indecifráveis aparições espectrais.
Na vertente erótica, claramente apostada na neo-figuração, vemos um imaginário de corpos sempre desnudos, sem pudor de exibir a genitalidade, a masturbação e a cópula. Estes corpos são muitas vezes apresentados de maneira sórdida, às vezes rastejando, outras com a aparição de elementos animais (narizes de suíno, por exemplo) e mais habitualmente com grande desfasamento de proporção. É o caso das pranchas utilizadas em Marranades, a sua primeira mostra, inspirada no livro Estranhos Prazeres, a novela de maior êxito da escritora francesa Marie Darrieussecq (n.1969). «Conheci este texto através de uma obra de teatro d'O Bando, mais precisamente a obra com que estrearam o espaço de Palmela, depois de terem estado em Santo Antonio à Estrela. Foi das peças de teatro que mais me impressionou até hoje, chamaram-lhe A Porca. As ilustrações estão muito influenciadas pela estética da obra», explica Célia, que viu nesta representação teatral uma abertura ao mundo da «nossa faceta animal e andróide».
Parece então ser com certa naturalidade, quase como que buscando uma plenitude, que encontramos também trabalhos onde as duas componentes anteriormente referidas – erotismo e geometrismo – se entrecruzam amavelmente. Esta terceira via de mesclagem ou síntese podemos já apreciá-la identicamente nalgumas das ilustrações de Marranades: diante de um labirinto branco e negro, em perspectiva diagonal, vemos corpos humanos rastejando e coexistindo com animais. Parecem forjar um apelo às dimensões mais recônditas da interioridade humana, a uma obscuridade irrespirável e sufocante, a uma sexualidade fragmentária, doentia e perversa (ou ‘suja’). Resta saber se falamos da natureza humana (id ou líbido) ou da repressão sócio-cultural (superego).

III. O Curso do Método

A meio caminho, aquando da sua exposição individual na Casa Elizalde, um centro cultural que não sendo dos primeiros, tem lugar influente no panorama artístico de Barcelona, Célia Barros introduziu novos conceitos no campo da sua obra e da apresentação expositiva, a nível espacial e de conjunto.
De facto, falamos neste caso mais propriamente de sequências de obras que de trabalhos isolados. Encontrámos, por exemplo, a distribuição de várias das estampas pelo solo, segundo um modelo composicional, o que implica que nenhuma delas em particular seja obra, em solitário, se não que a obra se torna o conjunto, e além do mais o conjunto distribuído de uma certa maneira, não isento de uma (in)certa arbitrariedade, e ainda mais: ocupando este espaço preciso.
Temos a anuência da jovem artista: «na exposição da Casa Elizalde, a técnica utilizada é unicamente a calcografia em pranchas de ferro. A arbitrariedade é emocional, sensitiva e táctil. As estampas não estavam emolduradas, não havia nenhum tipo de protecção ou distanciamento da obra face ao espectador. Ainda mais: uma alcatifa onde te deverias descalçar para que te pudesses aproximar das estampas e das matrizes tanto quanto quisesses. A maioria destas estampas estão guardadas como relíquias e não as posso vender, uma vez que estão impregnadas de marcas deixadas pelos visitantes da exposição.»
O processo criativo não se acaba portanto no acto em que as pranchas impressas saem das maquinarias de gravação. Cada objecto resultante deste primeiro instante geracional deriva por sua vez elemento de outro processo maior, já não só ilustrativo, mas instalativo ou instalacional: a obra devém da agregação do que então passam a ser fragmentos, fracções, agora resgatados num novo movimento criativo – e além do mais dinâmico, aberto, nunca verdadeiramente acabado. O que corresponde a dizer que a noção de processo começa a ganhar relevância no pensamento e no labor artísticos de Célia.

IV. Nos interstícios da obra


Chegados a 2005, esta predominância do conceito de processo – nas suas dimensões pragmática e poética – na obra da artista de origem lisboeta, atingiu já um avatar de maturidade. Isso mesmo tivemos oportunidade de presenciar nas suas obras expostas numa colectiva da galeria Aukan, também em Barcelona, no início deste ano.
Nos três trabalhos que apresentou, havia um aspecto constante: as próprias placas de gravação, habitualmente um artefacto utilizado em estúdio para a confecção de uma obra impressa, são elevadas à categoria de escultura, passam aqui a ter o estatuto de obra de arte. Em busca de fusões, Célia logrou igualmente unir no mesmo trabalho as suas duas expressões favoritas: escultura e gravura, em frutífera comunhão, plasmando-se e homenageando-se na sua polifacética amplitude de recursos e possibilidades.
Numa das obras, a prancha de impressão, usada, desgastada e ferrugenta, pendia suspensa do tecto, consagrando-se em toda a riqueza de experiência tridimensional ao olhar do espectador. Este elemento que correntemente não era senão um aparato técnico manipulado na produção daqueles objectos que viriam a ser os verdadeiros resultados artísticos, ascende agora ao lugar do visível: já não serve para fazer arte, senão que ele mesmo se faz arte.
As restantes duas peças, mais aparentadas entre si, ofereciam-se na parede, num jogo de dupla apresentação: desde um cilindro de ferro, também tradicionalmente e por norma apenas um instrumento da oficina de gravura, escoa-se um baixo relevo de silicone, como que reproduzindo a folha impressa. Além do impacto visual que criam os contrastes e as texturas, a obra provoca um evidente efeito simbólico: o que se está representando em obra é o momento em que a obra sai da máquina, ou seja, é uma clara e sentida evocação do estético enquanto processo e não (somente) como resultado.
Ou dito de outra forma: o processo é o resultado, o que é arte encontra-se em todos os momentos da sua própria sequência criativa e heurística, como uma descoberta, uma adveniência, um devir, perpetuum moto.

V. Palavras finais

Célia Barros vive actualmente no Brasil, numa pequena comunidade do interior do Estado de São Paulo, onde participa num projecto de eco-arte, ou arte ambiental, através da recolha não agressiva de despojos naturais nas imediações da Amazónia e a sua posterior utilização no fabrico de objectos artísticos. O próximo passo, possivelmente já em marcha, poderá ser a vida como processo, como poço inesgotável de criatividade, se nos fazemos entender.

Alexandre Nunes de Oliveira
(Diário do Sul/Universitat Autònoma de Barcelona)