Entrevista com Jean Baudrillard
Entrevista com Jean Baudrillard
A (insuportável) melancolia do ser
Por Alexandre Nunes Oliveira
Aquando da sua recente passagem por Barcelona, para um ciclo de conferências sobre as «Geografias do Pensamento Contemporâneo», tivemos a oportunidade de privar por alguns minutos com o filósofo francês Jean Baudrillard, o grande arauto do pessimismo pós-moderno.
A idade, que começa a ser provecta, presta-lhe um ar de sábio imperturbável, não lhe afectando em nada as conhecidas habilidades retóricas, nem alterando minimamente as suas ideias. Pelo contrário: mostra-se cada vez mais obstinado na convicção de que tudo vai mal no pior dos mundos.
Eis aqui a transcrição da breve conversa, que concluiu com um minúsculo e inesperado testemunho de esperança, confiando as palavras ao coração essencial das coisas.
Pergunta: Na sua prelecção de hoje defendeu a ideia de que o fim da alienação não é uma liberação, como tanto se anseia, mas uma perda ela mesma, porque implica a recusa do ‘outro’...
Baudrillard: É mais - implica a renúncia e a destruição do Outro, o eclipse da Alteridade. Já não somos ameaçados pelo Outro, estamos no plano da totalidade do sujeito – um sujeito sem objecto, que se basta a si mesmo. Pelo menos foi assim que se pensou o fim da alienação, como «a transparência total do sujeito». Mas isso na verdade é uma nova despossesão, porque se faz à custa do extermínio do Outro.
P: O que me está a dizer, portanto, é que o fim da alienação é uma nova forma de alienação...
B: Quero dizer que deixámos de estar «alienados» para passar a estar «super-alienados». E está é a nova forma de terror, o grande delírio pós-moderno, que podíamos classificar como o «neo-indivíduo» - uma micropartícula ligada a todas as redes, numa espécie de delírio da identidade-caos. Hoje tudo está interligado, funcionando em redes. Ora, o indivíduo já nem sequer é um «sujeito»: alimenta-se da religião da performance e da produtividade, do tempo útil, do zapping...
P: Pode, de facto, entrever-se nessa descrição um mecanismo de tipo religioso...
B: É a pior das religiões... é o novo integrismo: o indivíduo «integrado» (socialmente) é aquele que na verdade está «desintegrado» (em si mesmo). Resulta, portanto, não da ‘libertação’, mas da ‘liberalização’... A Liberdade respeita ao espaço simbólico e crítico do sujeito; ao passo que a Liberalização não engendra senão um indivíduo que é uma excrescência patológica, uma mera unidade estatística. Diria mesmo que a divisão do sujeito é a «estatística fundamental»: a imunização do sujeito, dividido, fragmentado, desintegrado.
P: Mas as tecnologias, e as redes de que fala, também podem abrir novas possibilidades, novos horizontes... ou não?
B: Penso que o indivíduo é um falso interlocutor da máquina. O sistema – rede ou net – não tem princípio nem finalidade, o seu efeito é narcótico, é a interactividade em circuito fechado. Veja: o computador é diferente da máquina de escrever, pois esta era totalmente exterior ao sujeito, ao passo que em frente ao computador nos tornamos um ectoplasma do ecrã e da máquina.
P: Ou seja, face ao tecnológico e ao virtual, não temos defesa, somos como espectros, desalojados de nós mesmos...
B: São as evidências da crise. As máquinas só produzem máquinas, logo, enfrentamo-nos a uma maquinização tecnológica do humano, tornado máquina também, mecânica e maquinalmente dominado pela ilusão de «liberdade mental» da rede/net, pela vertigem da interactividade, pelo fantasma da performance ideal... Isto afectou inclusive a sexualidade, que por isso se tornou pornográfica e maquínica. Mas é no fundo uma sexualidade frágil, incerta, confusa. Estamos à deriva, erraticamente. É o princípio da incerteza, o pânico moral da indistinção.
P: É realmente um cenário de profunda crise, aquele que diagnostica...
B: Crónico... e «clónico» - porque a clonagem está aí cada vez mais presente. É um tempo de Melancolia do ser. A fragmentação e fractalização, bem como a diáspora mental pelas redes, são próprias de uma sociedade narcísica, a sociedade da cirurgia plástica. A mundialização, realidade da totalização virtual, integrada e integral, provoca um tipo de promiscuidade total connosco mesmos: uma colagem do eu, imerso e devorado pelo visual. O audiovisual devora o celular, a própria célula. A net, o vídeo e a realidade virtual são os novos princípios e sintomas do diabólico. A crítica da metafísica tradicional levou à sua denegação, pelo que a modernidade não está definitivamente situável em parte nenhuma. Perdeu-se uma sociedade e um tempo cujas referências desapareceram.
P: Esse é um discurso altamente propenso à nostalgia. Não poderemos simplesmente afirmar que superámos a modernidade e que estamos em condições de buscar outros caminhos?
B: O pós-moderno sobrepassa o moderno, mas o pós-moderno é tão só uma simulação.
P: Mas não se pode negar que há actualmente uma cultura urbana viva, aberta e cosmopolita. E o cinema, a dança e outras expressões artísticas contemporâneas mantém, embora possivelmente em círculos restritos, a sua capacidade crítica e criativa...
B: A interculturalidade não é senão outra ilusão. E enfim, tudo se tornou estético hoje em dia, mas no pior sentido. O novo teatro reclama o espectador como elemento activo, mas isso equivale a dizer que o espectador morreu. Perdemos o espectáculo para a realidade virtual, que nega o tempo, pois faz com que as coisas possam acontecer instantaneamente e em simultâneo. O tempo deixou de ser circular e ritual para ser linear e infinito, o que acarreta a perda da memória. A informação, por exemplo, já não é verdadeira ou falsa, é apenas verdadeira em «tempo real». Depois esquece-se. É um ultra-espaço de não-verdade. O digital, além do mais, deixa de dar sequência e tenta anular a linguagem: o signo e o valor são desprezados e pulverizados. O mundo actual é operacional, objectivo e sem alternativa.
P: Mas não se pode cancelar a linguagem!...
B: É verdade. A linguagem está no coração das coisas. A técnica é universal porque se abstrai do singular. E precisamente, o que importa não é tanto a subjectividade, mas a singularidade. Esta é um acontecimento, está fora da órbita do sujeito e do objecto. A singularidade faz parte do indivíduo, mas também das coisas - é a sua unicidade.
Alexandre Nunes Oliveira
(Diário do Sul/Universidade Autónoma de Barcelona)
(--------- Sobre Baudrillard---------)
Jean Baudrillard nasceu em Reims, França, no ano de 1929, tendo desenvolvido a sua formação universitária no âmbito das Línguas e Literaturas Germânicas. Inicialmente influenciado pelo linguista Roland Barthes, seria somente a partir do Maio de 68, que, fazendo parte da geração de intelectuais pós-estruturalistas franceses encabeçada por Deleuze, Lyotard, Derrida e outros, começa a publicar títulos com ressonâncias filosóficas e sociológicas, tendo vindo a afirmar-se, nas décadas seguintes, como uma das vozes mais destacadas do chamado pensamento pós-moderno. Crítico incisivo e amiúde cáustico, exprime uma visão pessimista dos tempos que vivemos, dominada pela tecnologia, os media e o virtual, que desbalizam a qualidade das relações humanas e nos prestam uma percepção deformada da realidade.
Membro do Colégio da Patafísica desde e do Centre National de la Recherche Scientifique, Baudrillard foi professor em diversas universidades de Paris, ensinando actualmente na European Graduate School de Valais (Suíça). Entre as suas obras contam-se La société de consommation (1970), À l'ombre des majorités silencieuses (1978), Simulacres et simulation (1981), L'autre par lui-même (1987), La Guerre du Golfe n'a pas eu lieu (1991), Illusion, désillusion esthétiques (1997), L'esprit du terrorisme (2002), entre muitas outras.
A (insuportável) melancolia do ser
Por Alexandre Nunes Oliveira
Aquando da sua recente passagem por Barcelona, para um ciclo de conferências sobre as «Geografias do Pensamento Contemporâneo», tivemos a oportunidade de privar por alguns minutos com o filósofo francês Jean Baudrillard, o grande arauto do pessimismo pós-moderno.
A idade, que começa a ser provecta, presta-lhe um ar de sábio imperturbável, não lhe afectando em nada as conhecidas habilidades retóricas, nem alterando minimamente as suas ideias. Pelo contrário: mostra-se cada vez mais obstinado na convicção de que tudo vai mal no pior dos mundos.
Eis aqui a transcrição da breve conversa, que concluiu com um minúsculo e inesperado testemunho de esperança, confiando as palavras ao coração essencial das coisas.
Pergunta: Na sua prelecção de hoje defendeu a ideia de que o fim da alienação não é uma liberação, como tanto se anseia, mas uma perda ela mesma, porque implica a recusa do ‘outro’...
Baudrillard: É mais - implica a renúncia e a destruição do Outro, o eclipse da Alteridade. Já não somos ameaçados pelo Outro, estamos no plano da totalidade do sujeito – um sujeito sem objecto, que se basta a si mesmo. Pelo menos foi assim que se pensou o fim da alienação, como «a transparência total do sujeito». Mas isso na verdade é uma nova despossesão, porque se faz à custa do extermínio do Outro.
P: O que me está a dizer, portanto, é que o fim da alienação é uma nova forma de alienação...
B: Quero dizer que deixámos de estar «alienados» para passar a estar «super-alienados». E está é a nova forma de terror, o grande delírio pós-moderno, que podíamos classificar como o «neo-indivíduo» - uma micropartícula ligada a todas as redes, numa espécie de delírio da identidade-caos. Hoje tudo está interligado, funcionando em redes. Ora, o indivíduo já nem sequer é um «sujeito»: alimenta-se da religião da performance e da produtividade, do tempo útil, do zapping...
P: Pode, de facto, entrever-se nessa descrição um mecanismo de tipo religioso...
B: É a pior das religiões... é o novo integrismo: o indivíduo «integrado» (socialmente) é aquele que na verdade está «desintegrado» (em si mesmo). Resulta, portanto, não da ‘libertação’, mas da ‘liberalização’... A Liberdade respeita ao espaço simbólico e crítico do sujeito; ao passo que a Liberalização não engendra senão um indivíduo que é uma excrescência patológica, uma mera unidade estatística. Diria mesmo que a divisão do sujeito é a «estatística fundamental»: a imunização do sujeito, dividido, fragmentado, desintegrado.
P: Mas as tecnologias, e as redes de que fala, também podem abrir novas possibilidades, novos horizontes... ou não?
B: Penso que o indivíduo é um falso interlocutor da máquina. O sistema – rede ou net – não tem princípio nem finalidade, o seu efeito é narcótico, é a interactividade em circuito fechado. Veja: o computador é diferente da máquina de escrever, pois esta era totalmente exterior ao sujeito, ao passo que em frente ao computador nos tornamos um ectoplasma do ecrã e da máquina.
P: Ou seja, face ao tecnológico e ao virtual, não temos defesa, somos como espectros, desalojados de nós mesmos...
B: São as evidências da crise. As máquinas só produzem máquinas, logo, enfrentamo-nos a uma maquinização tecnológica do humano, tornado máquina também, mecânica e maquinalmente dominado pela ilusão de «liberdade mental» da rede/net, pela vertigem da interactividade, pelo fantasma da performance ideal... Isto afectou inclusive a sexualidade, que por isso se tornou pornográfica e maquínica. Mas é no fundo uma sexualidade frágil, incerta, confusa. Estamos à deriva, erraticamente. É o princípio da incerteza, o pânico moral da indistinção.
P: É realmente um cenário de profunda crise, aquele que diagnostica...
B: Crónico... e «clónico» - porque a clonagem está aí cada vez mais presente. É um tempo de Melancolia do ser. A fragmentação e fractalização, bem como a diáspora mental pelas redes, são próprias de uma sociedade narcísica, a sociedade da cirurgia plástica. A mundialização, realidade da totalização virtual, integrada e integral, provoca um tipo de promiscuidade total connosco mesmos: uma colagem do eu, imerso e devorado pelo visual. O audiovisual devora o celular, a própria célula. A net, o vídeo e a realidade virtual são os novos princípios e sintomas do diabólico. A crítica da metafísica tradicional levou à sua denegação, pelo que a modernidade não está definitivamente situável em parte nenhuma. Perdeu-se uma sociedade e um tempo cujas referências desapareceram.
P: Esse é um discurso altamente propenso à nostalgia. Não poderemos simplesmente afirmar que superámos a modernidade e que estamos em condições de buscar outros caminhos?
B: O pós-moderno sobrepassa o moderno, mas o pós-moderno é tão só uma simulação.
P: Mas não se pode negar que há actualmente uma cultura urbana viva, aberta e cosmopolita. E o cinema, a dança e outras expressões artísticas contemporâneas mantém, embora possivelmente em círculos restritos, a sua capacidade crítica e criativa...
B: A interculturalidade não é senão outra ilusão. E enfim, tudo se tornou estético hoje em dia, mas no pior sentido. O novo teatro reclama o espectador como elemento activo, mas isso equivale a dizer que o espectador morreu. Perdemos o espectáculo para a realidade virtual, que nega o tempo, pois faz com que as coisas possam acontecer instantaneamente e em simultâneo. O tempo deixou de ser circular e ritual para ser linear e infinito, o que acarreta a perda da memória. A informação, por exemplo, já não é verdadeira ou falsa, é apenas verdadeira em «tempo real». Depois esquece-se. É um ultra-espaço de não-verdade. O digital, além do mais, deixa de dar sequência e tenta anular a linguagem: o signo e o valor são desprezados e pulverizados. O mundo actual é operacional, objectivo e sem alternativa.
P: Mas não se pode cancelar a linguagem!...
B: É verdade. A linguagem está no coração das coisas. A técnica é universal porque se abstrai do singular. E precisamente, o que importa não é tanto a subjectividade, mas a singularidade. Esta é um acontecimento, está fora da órbita do sujeito e do objecto. A singularidade faz parte do indivíduo, mas também das coisas - é a sua unicidade.
Alexandre Nunes Oliveira
(Diário do Sul/Universidade Autónoma de Barcelona)
(--------- Sobre Baudrillard---------)
Jean Baudrillard nasceu em Reims, França, no ano de 1929, tendo desenvolvido a sua formação universitária no âmbito das Línguas e Literaturas Germânicas. Inicialmente influenciado pelo linguista Roland Barthes, seria somente a partir do Maio de 68, que, fazendo parte da geração de intelectuais pós-estruturalistas franceses encabeçada por Deleuze, Lyotard, Derrida e outros, começa a publicar títulos com ressonâncias filosóficas e sociológicas, tendo vindo a afirmar-se, nas décadas seguintes, como uma das vozes mais destacadas do chamado pensamento pós-moderno. Crítico incisivo e amiúde cáustico, exprime uma visão pessimista dos tempos que vivemos, dominada pela tecnologia, os media e o virtual, que desbalizam a qualidade das relações humanas e nos prestam uma percepção deformada da realidade.
Membro do Colégio da Patafísica desde e do Centre National de la Recherche Scientifique, Baudrillard foi professor em diversas universidades de Paris, ensinando actualmente na European Graduate School de Valais (Suíça). Entre as suas obras contam-se La société de consommation (1970), À l'ombre des majorités silencieuses (1978), Simulacres et simulation (1981), L'autre par lui-même (1987), La Guerre du Golfe n'a pas eu lieu (1991), Illusion, désillusion esthétiques (1997), L'esprit du terrorisme (2002), entre muitas outras.
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