A Pós-Modernidade na Europa
A relevância e a pertinência de perscrutar a visão europeia sobre a Pós-Modernidade prende-se com várias ordens de razões, algumas que seguidamente deslindaremos. Primeiramente, e desde logo, pelo facto do debate sobre a Condição Pós-Moderna ter emergido num contexto europeu, já que se move de um conceito introduzido na esfera da Filosofia e das Ciências Sociais e Humanas pelo pensador parisiense Jean-François Lyotard[1].
Embora a controvérsia se tenha espraiado depois, e celeremente, à escala mundial, sobretudo ao Continente Americano, onde também tem sido concebida abundante e significativa produção intelectual sobre o assunto, esta ínclita e inegável origem da discussão sobre a Pós-Modernidade no Continente que habitamos confere, ao nosso aviso, legitimidade para indagar sobre uma eventual especificidade da situação e/ou do pensamento pós-moderno europeu, ou pelo menos, para localizar e aferir qual o vigente estado da questão, digamos, como tem evoluído – ou eventualmente estagnado – esta confrontação entre os intelectuais da Europa sobre um tema tão assumida e demarcadamente contemporâneo.
De resto, importa-nos também questionar que, se a «Modernidade» é, ou foi, uma invenção de europeus, e um desiderato assinalavelmente europeu, então, designar de «pós-moderno» um cenário histórico, um contexto civilizacional, ou mesmo que somente um movimento ou um conjunto de ideias inovadoras, provocativas, reivindicativas ou iconoclastas, envolve também um posicionamento sobre a Europa, até aqui impulsionada pelos ideais «modernos» que nela nasceram e averiguar da sua actualidade ou fracasso, de rotura ou continuidade, possibilidade de resgate ou definitivo encerramento e ultrapassagem - pois é evidente que o uso do termo «pós-moderno» se refere habitualmente às ideias de superação, contracção, reprovação ou negação da Modernidade, conceito que, reiteramos, implica também uma certa relação com, ou mesmo concepção do chamado Velho Continente.
O mesmo é dizer que dispõe de toda a naturalidade, ao que se nos aparenta, reclamar uma relação intestina entre Pós-Modernidade e Europa, uma Europa que, na ressaca da devastação em grande medida auto-infligida através da II Guerra Mundial, se viu (e se vê ainda, eventualmente), pelo menos em boa parte dos seus sectores sociais, agentes e forças vivas, obrigada ou constrangida a repensar-se nos seus valores, na sua identidade, no seu projecto - se é que se pode falar nestes termos, o que também é uma questão sucedânea mas com o seu justo relevo.
Arremetendo por outra vertente, mas a estes mesmos motivos conducente, pretendemos identicamente seguir a intuição e a imperatividade de pensar a Pós-Modernidade na Europa porque cremos, cada vez mais, que a Filosofia deve reflectir e debruçar-se sobre a realidade que nos rodeia, sobre a nossa época, os enfrentamentos e os problemas que desperta e se nos colocam no nosso presente. Enfim, que é sua tarefa e mister meditar sobre o nosso tempo actual, que é também o nosso espaço, onde nos movemos, vivemos e somos[1].
Ora, esse espaço é a Europa, como grande território transnacional por cujas fronteiras podem circular, de forma mais ou menos livre, as pessoas e os bens - e acrescentaria: as ideias, as modas, os estilos de vida, as tendências culturais. A democratização dos meios de transporte[1], a autonomia, instantaneidade e continuidade comunicativas que permitem as actuais tecnologias, tal qual a proliferação de programas escolares e pré-laborais de intercâmbio e a sua relativa facilidade de acesso[1], são factores que motivam hoje as novas gerações dos diferentes países a interagirem maiormente e a conhecerem-se melhor, daí resultando uma depuração da consciência das nossas diferenças, mas também das semelhanças que nos ligam e unem.
Com efeito, é indiscutível, a Europa, conhece hodiernamente um período notável da sua cultura urbana, cada vez mais forte, vívida, aberta, criativa, miscigenada, interactiva e transversal, no seio da qual a juventude, o sexo feminino, as minorias tradicionalmente desclassificadas e repudiadas, reclamam direitos e exercem um protagonismo crescente, descentrado e poliédrico. Ao mesmo tempo, porém, em vários países vence o «não» nos referendos sobre a Constituição Europeia, crescem movimentos que pretendem controlar a imigração e repor fronteiras, o terrorismo infiltra-se e difunde o medo e o pânico nas grandes metrópoles. Bem rubricava Lyotard, portanto, há quase um quarto de século, que a transição entre a Modernidade e a Pós-Modernidade consta no seu cerne de um problema de «legitimação».
Legitimidade, porque cabe saber se o projecto de construir uma Europa unida (que não necessariamente única) é uma ideia que está de acordo com o pensar, o pulsar e o sentir das gentes europeias de hoje em dia, ou é um último grande modelo utópico moderno, com demasiada ênfase nos aspectos económicos e políticos, excessivamente técnico, desumanizado e burocrático, e que por estas razões afinal resulta desfasado e colide com as vivências e as aspirações reais da população.
Reformulando a questão: são os nossos políticos e as instituições onde têm assento que vivem o afã de um projecto «pós-moderno» no qual boa parte da população europeia não se revê - porque não está preparada e tem receios antiquados?; ou é outrossim o projecto político que não encontra eco na sociedade civil, hoje mais activa e avançada que nunca, porque se afigura inadequado ou não está à altura ou das suas pretensões, necessidades e anelos?
Dada a premência com que nos requerem estas questões, meditar a Pós-Modernidade é, logo, pensar igualmente o que é ser europeu hoje, em tempos de globalização e resistência, conflitos e tolerâncias, convivência de discursos e práticas, coexistência de valores plurais e disseminados.
Por isso também a nossa proposta de investigação contempla a discussão das teses de dois autores que estão ainda vivos[1], e não podemos dizer que Lyotard tenha falecido assim há tanto tempo[1].
Lyotard e a Condição Pós-Moderna
Resgatando um termo que já circulava anteriormente, primeiro pelo terreno da arquitectura, depois de forma geral no contexto da artes, Jean-François Lyotard introduziu no final da decáda de 70 o termo «pós-moderno» e suas derivações, no campo da Filosofia e das Ciências Sociais, referindo-se ao estado da cultura, das ciências e das práticas discursivas e de saber.
Lyotard pretendia caracterizar com esta categorização as transformações que afectaram as regras e a estrutura da ciência, das artes e da própria sociedade, numa configuração que veio ganhando forma a partir do Século XIX, mas que sofreu decisiva inflexão após a II Guerra Mundial. De facto, a mortandade e a destruição que se levou a cabo no conflito, conduziu, no Ocidente, a um descrédito pungente relativamente aos «relatos», ou seja, às grandes ideologias, que, de certo pelo menos em parte, funcionaram como detonadores da beligeração.
Esses discursos ou narrativas eram, ou foram, prototípicos da modernidade europeia: o relato da Luzes, a emancipação do Sujeito, a dialéctica do Espírito ou o Materialismo histórico, etc. As grandes doutrinas filosóficas constituíam discursos de legitimação para as práticas científicas e culturais, orientadas pelo fito político de solucionar racionalmente os clássicos problemas da desigualdade social e alcançar a paz perpétua, a civilização no seu estado derradeiro, perfeito e harmónico, em suma, o «fim da história», terminal e teleológico.
A Modernidade, assim sendo, pode definir-se como esse período da História, europeia ou humana, em que se assomou a emergência do sujeito racional, pretensamente independente da Natureza, em posição sobranceira e arrogante face ao mundo e às coisas que o rodeiam, e que procura dominar através do desenvolvimento da investigação científica e de uma técnica instrumental. Inicialmente, este processo veio fundado na dúvida metódica e na crença da bondade da economia divina. Mas uma vez caída a teodiceia, os modelos teóricos começaram a alicerçar-se numa postura ou interpretação teleológica do curso dos feitos humanos, que, uma vez detectado conscientemente, conduz ao optimismo e à crença no advento cercano de um futuro melhor e mais justo para todos os homens, no qual a política e a ciência jogam em conjunto um papel libertador. Desta forma nasciam as ideologias modernas.
Acabadas as Guerras Mundiais, contudo, as novas gerações alertaram para a crise e eventual esgotamento destes modelos, que afinal encaminharam os países e os povos aos confrontos militares e ao colonialismo expropriador, sem nunca terem propriamente resolvido as iniquidades e os desníveis sociais. Deste anseio de repudiar ou superar a Modernidade nasceu a denominação de origem «pós-moderno» e suas filiações habituais, que, como já aflorámos, têm no seu cerne o descrédito face às metanarrativas e à suas formas de legitimação.
A Pós-Modernidade, se a vivemos, é pois um tempo de esperanças e contradições. Sem dúvida, apresenta-se como uma era de abertura, aprendizagem de diferenças, tolerância, coexistência de discursos e práticas. Convivemos na encruzilhada de elementos linguísticos, narrativos e pragmáticos plurais, descentrados, cambiantes e instáveis, mas heterogeneidade e mutabilidade também podem ser sinónimos de indeterminação, desajuste, fragmentação e relativismo, que se reflectem no decréscimo da qualidade da comunicação, na falta de rumos e valores perduráveis, na ausência de lógicas prevalecentes e de continuidade, que desencadeiam angústias e conflictividades.
Os Estados e as instituições têm que lidar com o descrédito e as exponenciais reivindicações dos cidadãos, bem como com o crescente poder das multinacionais. O capitalismo tende a tornar todos os objectos, incluindo a cultura e o saber, em mercadorias, com valor de troca e não finalidade interna, na roda viva da produção e do consumo. Mas apesar de tudo, a sociedade civil pode reclamar-se vicejante, dinâmica e influente, com as suas organizações não governamentais, grupos de interesse e outras formas de associativismo e activismo.
A sociedade é linguagem e o indivíduo não deixa de estar em rede e em redes, com o que estas dispõem e providenciam de autonomia, flexibilidade e inventividade. Por isso, os jovens, as mulheres, as minorias étnicas e de orientação sexual, invocam os seus espaços e os seus direitos à participação cívica e pública, ao mesmo tempo que são responsáveis por produções culturais próprias, originais e alternativas. O panorama das artes, portanto, regista um momento inédito na história, enjeitando paradigmas únicos e modelos rígidos, e adoptando, ao invés, a pluralidade, a experimentação, a inovação e a miscigenação constantes.
A Pós-Modernidade cifra-se, logo, como um tempo de crise, pelo paradoxo da sua saturação e carência simultâneas, mas também se impõe, como nos exorta Lyotard, maravilhar-nos ante a variedade e o fluxo das novas classes discursivas, gozar dos seus horizontes de liberdade e escolha, seguramente mais amplos que em outras épocas - e também lugares, se seguirmos a intuição primeva de centrar o nosso estudo na realidade europeia actual.
Vattimo, ou o Optimismo Europeu
A escolha de Gianni Vattimo como um dos autores principais desta pequena pesquisa sobre o Pensamento Pós-Moderno Europeu, prende-se notoriamente com vários motivos, conquanto se possa facilmente detectar articulações entre si. Desde logo, porque se trata de um dos mais destacados pensadores das temáticas pós-modernas, sendo um autor que se tem mostrado particularmente activo nos últimos anos, através da publicação de numerosos livros de ensaio e artigos em revistas, jornais e outros formatos.
Por outra parte, Vattimo não só é um pensador europeu, como é assumida e assomadamente europeísta, tendo inclusive já exercido funções de eurodeputado: ou seja, é alguém que realmente se preocupa e envolve no processo da construção europeia, onde, entre outros assuntos e afazeres, se ocupou pessoalmente dos programas de intercâmbio Socrates e Leonardo, dos direitos dos animais e da promoção da inclusão das minorias[1].
Buscando uma ligação com o autor que antecedentemente abordámos, Vattimo foi igualmente um grande divulgador da obra de Lyotard, prefaciando algumas das traduções publicadas em Itália do filósofo de Versalhes. O ex-deputado europeu foi também um dos autores que se prontificou a redigir um epitáfio aquando da morte de Lyotard, que mereceu publicação no jornal francês Libération[1].
Por fim, Gianni Vattimo, pelo seu carácter, percurso e pensamento, é ele mesmo uma viva personificação do pós-modernismo, pelas aparentes tensões das suas escolhas e do seu itinerário: apesar de nunca ter deixado de reconhecer-se, abertamente, como religioso e cristão confesso, é um activista dos direitos dos homossexuais e de outras minorias discriminadas, já foi candidato a cargos políticos pelo Partido Comunista, e os filósofos que mais admira são Nietzsche e Heidegger, sobre os quais detêm estudos importantes.
Em suma, este filósofo oriundo de Turim, desde há muito que dedica atenção aos problemas da pós-modernidade desde o ponto de vista teórico-especulativo, como também lhe nutre intervenção e apelo continuados no domínio político e prático. Gianni Vattimo é pois um entusiasta da Europa e do Pós-Modernismo, da sua ligação embrionária, ideólogo da sua gesta e causa, agente dos seus processos políticos, activista das suas virtualidades de sentido e ser.
São dados que desde já nos oferecem um horizonte de configuração para a aproximação ao seu pensamento, optimista e progressista no que toca à Pós-Modernidade na Europa. Vattimo move-se nos meandros da ontologia e da hermenêutica contemporâneas, e, seguidor do criticismo radical tecido por Nietzsche e Heidegger, sustenta uma interpretação positiva da debilitação das categorias tradicionais da metafísica. Este assim chamado pensamento «débil», redução ou superação do dogmatismo e das suas formas contíguas de violência e injustiça, é a condição para todo o esforço emancipatório, e o passaporte para transfigurar o olhar sobre o mundo, que não aparece estático e definido nas suas entidades e substâncias, na sua ordem rígida e invariável, senão aberto à liberdade e à mudança, ao devir próprio da temporalidade, a uma existência humana real, física e corpórea, que transcorre entre a linha subtil que divide a vida e a morte.
Para além da dimensão mais individual e existencial, conjuntural e historicamente, esta tendência reflecte-se na secularização da vida gregária, na transição gradual a regimes políticos democráticos, propensos ao pluralismo e à tolerância, na senda de uma sociedade mais «transparente», uma comunidade em que já não há perspectivas totalizadoras, hegemónicas ou privilegiadas, e que, contrariamente, favorece as «aventuras da diferença», a pluralidade e a coexistência de padrões, práticas e pontos de vista diversos. A paisagem da Pós-Modernidade caracterizar-se-ia, por conseguinte, pelo abandono dos paradigmas da unicidade dominante e autoritária e a sua substituição por multiplicidades débeis, isto é, mais ou menos conscientes da sua relatividade, contingência e deveniência, mais consentâneas com o fulcro da democracia, e das suas práticas de diálogo em liberdade, nas suas dimensões construtivas, participadas e enriquecedoras do indivíduo e do todo social.
A base ética e política desta nova sociedade consiste na assumpção do respeito pela liberdade dos demais, e na resistência face a normatividades que se pretendem naturais ou inclusivamente sobrenaturais, mas que apenas fomentam a ignorância, a submissão e a discriminação da diferença[1]. A reapropriação do cristianismo e do socialismo, como valores profundos e úteis para a constituição da sociedade actual, descentrada e aberta, marca também o nó de chegada da Europa pós-moderna, isto é, da mobilidade, do intercâmbio, do diálogo profícuo e da edificação comum mas partilhada e não determinada por um poder superior.
Nessa direcção adveio a sua obra mais recente, Il socialismo ossia l’Europa (2004), onde explana o significado e as possibilidades de futuro do processo de construção e integração continental, sob a égide de um programa de esquerda. Segundo o autor, a identidade da Europa passa hoje sobremaneira pela afirmação de um modelo de solidariedade social transversal, abarcando os diferentes estractos, classes e gerações, ou seja, abraçando todas as vozes e não um arquétipo unidimensional, mas também forçosamente pelo contrapeso à hegemonia planetária dos E.U.A., e que rebata o capitalismo selvagem e paternalista como única solução válida para a definição da ordem internacional.
Bauman, áugure do descontentamento
A escolha de Zygmunt Bauman para terceiro autor condutor do veio da nossa investigação a desenrolar durante o próximo ano lectivo pode parecer à primeira vista não tão feliz nem enquadrada como a de Gianni Vattimo, dado tratar-se de um especialista oriundo do campo da sociologia. No entanto, tal objecção afigura-se precária, se pensarmos ter existido sempre um vínculo úbere entre a filosofia e a investigação sociológica, praticamente desde a origem desta disciplina no século XIX, sendo, além do mais, que esta ligação tem sido amplamente reatada nas décadas mais recentes, através de um grande influxo teórico e crítico, e mesmo especulativo, que tem matizado uma parte importante da produção da sociologia, tanto no espectro continental, como com grande relevância no mundo anglo-saxónico[1].
De resto, é o próprio Zygmunt Bauman que lucubra e ressalva a importância desta relação fundamental entre as áreas contíguas da filosofia e da sociologia[1]. Muitos dos seus textos dispõem e articulam temáticas e conteúdos admitidamente com ressonâncias ou implicações filosóficas[1], publicou identicamente estudos sobre pensadores conotados com a filosofia[1] e, por outro lado, também dedicou imensos artigos e ensaios à defesa teórica de uma sociologia empenhada desde os pontos de vista hermenêutico e crítico[1]. Por fim, não é nosso propósito, em momento nenhum, perfilar uma linha de investigação teorética nem metodologicamente fechada, mas outrossim entreaberta e receptiva, o que significa que os contributos pluri e interdisciplinares nos resultam – ou poderão em princípio resultar - benvindos e proveitosos.
Polaco, de família judia, sofreu na pele as perseguições nazis e as purgas estalinistas contra os hebreus. Personalidade de uma coragem e persistência admiráveis, sobremaneira, Bauman é por direito próprio um dos autores mais destacados no que respeita à reflexão sobre a Pós-Modernidade, com copiosa bibliografia publicada sobre a matéria e temas circundantes. E apesar da sua idade avançada, o Professor Emérito de Leeds é um autor prolífico e altamente activo nos últimos anos, como atestam os dez livros de fôlego editados nos derradeiros cinco anos[1].
Ultimamente, também em favor da verdade, Bauman tem vindo a tentar erradicar das suas obras o termo «pós-moderno» e seus derivados, tendendo a substitui-los por conceitos como a «modernidade líquida» e aparentados. No entanto, esta inflexão terminológica pelo «Líquido» como categoria teorética pode interpretar-se como a busca e aspiração legítima de um autor ilustre por desembaraçar-se das modas intelectuais e forjar o seu próprio quadro conceptual, numa altura em que o seu reconhecimento mundial está a plenificar-se e não admite contestação.
Na realidade, a forma como nas obras recentes Bauman analisa a questão da «liquidez» ou «liquefacção» da sociedade, das relações humanas, dos códigos, valores e atitudes[1] pode perfeitamente enquadrar-se na senda da análise e observação da Pós-Modernidade. De facto, o autor pretende designar por «líquido» a maior fluidez e dinâmica dos processos sociais e dos relacionamentos humanos, a contingência e a permutabilidade dos princípios e axiomas do mundo contemporâneo, a ausência de configurações e paradigmas estáveis e estácticos, menos duradoiros e imperativos, mais descentrados e ambivalentes. Isto é, o «líquido» opõe-se ao «sólido» sensivelmente nos mesmos critérios ou aspectos que o «pós-moderno» se contrapõe ao «moderno»[1].
Simplesmente, Bauman distancia-se de uma leitura tipo vattiminiana - que poderá incorrer, pelo seu perfil denunciadamente apologista e entusiasta, nalguma ingenuidade ou excesso optimista. O pensador polaco, de sua vez, não se priva de crer na incorruptível tarefa emancipatória das teorias e ciências sociais, mas adverte que estas passam pela manutenção de um espírito agudo, escrupuloso e incisivo de auscultação e crítica às tendências dominantes, que permita um esclarecimento eficiente e válido sobre as formas delusórias, subtis e latentes de opressão e alienação, as quais proliferam, mesmo num contexto civilizacional aparentemente povoado pela liberdade e a abertura.
Assim, alerta Bauman, a actual conjuntura indicia excluídos e marginalizados, reparte descontentamento, carências e desigualdades. Convoca-nos à atenção que a globalização não é igual para todos – alguns continuam retidos na redes locais do terceiro mundo, encerrados na miséria, injustiça e falta de perspectivas. Enfim, denuncia que o planeta da Pós-Modernidade manifesta também o seu mal estar e desconsolo, as suas bolsas de pobreza e inanidade, e que não podemos pura e simplesmente camuflar e ignorar essa face daninha e pesarosa. Porque mesmo no Ocidente pós-industrializado e das necessidades satisfeitas há dissabores que espreitam: a voragem de um sistema económico que desumaniza os indivíduos e tudo converte em mercadoria de consumo imediato a uma rapidez irrefreável; a fragilidade e precariedade dos laços sociais, familiares e interpessoais revela-se cada vez mais acentuada e inelutável; a moralidade corre sérios riscos de desagregar-se ante o vazio axiológico e os sinais confusos que caracterizam as nossas vivências coetâneas. Assim, enquanto para Vattimo a liberdade é um prémio, para Bauman ela tem antes um preço, ameaçada que se vê pela privatização político-económica, a fragmentação moral e a desintegração social que hoje corroem o espaço público e a estrutura da comunidade.
Finalmente, apontar que Bauman é apesar de tudo claramente um autor preocupado e empenhado com o conceito de Europa e o seu porvir – como demonstra o título Europe: An Unfinished Adventure[1], de prelo bastante recente, e cuja leitura recomendamos, na expectativa certa, quase certeira, de que será grata e fecunda.
As leituras estão aí, em aberto, e, já que os autores que elegemos como guias da nossa pesquisa todos se referem à importância heurística da «aventura», a ela também nos lançaremos em breve no trabalho de comentário e escrita que ressalta do nosso compromisso.
(devido a um problema de formatação, a numeração das notas saiu incorrecta:)
[1] - Falamos, em concreto, da sua obra precisamente intitulada La Condition postmoderne: rapport sur le savoir, originariamente vinda a lume em 1979.
[1] - Nesse sentido, o nosso esforço recolhe alguma inspiração em filósofos como o português José Gil e o catalão Eduardo Subirats, cujas obras recentes, correlativamente, Portugal Hoje. O Medo de Existir (2004) e Memoria y Exilio (2003), encetam uma poderosa reflexão crítica sobre o actual estado da cultura e o cenário de crise social dos seus respectivos países.
[1] - Os caminhos de ferro europeus são sulcados por comboios de interail, ao passo que os céus do continente são rasgados pelas carreiras regulares das companhias de baixo custo.
[1] - Recordo os programas Socrates, Erasmus, Leonardo da Vinci, Faro, etc.
[1] - Pelo menos, à altura em que escrevemos estas palavras, não temos notícia em contrário.
[1] - Óbito registado em Paris, a 21 de Abril de 1998.
[1] - Sobre as actividades políticas de Vattimo, http://www.giannivattimo.it/menu/f_parlamento.html
[1] - Cf. VATTIMO, Gianni. "Une constante référence." Libération (Avril 22, 1998):38 / Obituário a Jean-François Lyotard.
[1] - Neste contexto, é originalíssima a reflexão do filósofo italiano sobre a Encarnação divina como um evento de debilitação, entendendo que Deus abdica da sua transcendência inalcançável, proporcionando-se ao directo acesso dos humanos, e que a mensagem de Cristo pode hoje interpretar-se como um ponto de partida para uma sociedade da tolerância e das decisões compartilhadas.
[1] - Lembramos, por exemplo, os trabalhos de Anthony Giddens e Pierre Bordieu, ou mesmo de um Jürgen Habermas, seguramente tão citado nos Departamentos de Sociologia como nos de Filosofia.
[1] - Leia-se BAUMAN, Zygmunt. "Philosophical Affinities of Postmodern Sociology.", in Sociological Review (August 1990), vol. 38, no. 3, pp. 441-454. O título é já por si mesmo revelador.
[1] - Significativa produção de textos sobre ética, política e inclusivamente estética.
[1] - Quais Walter Benjamin, Emanuel Lévinas e Jean Baudriallard, entre outros.
[1] - A mero título exemplificativo, podemos citar: Towards a Critical Sociology: An Essay on Common-Sense and Emancipation. London: Routledge & Kegan Paul (1976) e Hermeneutics and Social Science: Approaches to Understanding. London: Hutchinson (1978).
[1] - Consultar, no final, a bibliografia recolhida para este autor.
[1] - Entre os seus títulos mais recentes contam-se: Liquid Modernity. Cambridge: Polity Press, 2000; Liquid Love: On the Fragilty of Human Bonds, Cambridge: Polity Press (2003) e Liquid Life. Cambridge: Polity Press, 2005.
[1] - ou também às categorias de «clássico» e «tradicional».
[1] - Cambridge: Polity Press, 2004.
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