11deJulho

tendências, souvenirs, beijos esparcidos aos precipícios dessa coisa rugosa que muitos chamam amor, solilóquios, colóquios, provocações e invectivas, enfim, de tudo um pouco, daquilo que sou

Tuesday, March 20, 2007

Sublime E Pós-Modernidade II, a meio caminho

1 – Apresentação panorâmica do tema da Dissertação Final de Doutoramento: «Sublime e Pós-Modernidade»[1]

É na Grécia Clássica que encontramos a origem da arte ocidental e também da reflexão estética que sempre a acompanhou. Foi uma época em que pontificou o paradigma do Belo, situação que perdurou durante mais de dois milénios.

Entrada a Europa na Modernidade, assistimos nos Séculos XVIII e XIX à consolidação irreversível de profundas transformações políticas, económicas e tecnológicas, que, obviamente, também tiveram repercussões no domínio da arte e da estética. A mais saliente é a entrada em jogo do Sublime, resultado não já da harmonia que pautava o Belo, mas fruto do espanto, da tensão e do desequilíbrio. A partir daqui, a arte vai progressivamente transformar em elementos de experiência estética o informe, o feio, o vulgar e o quotidiano, desenvolvendo-se teorias que acompanham e em alguns casos antecipam e fundamentam estes progressos. Por outro lado, as transformações que a arte sofreu não são alheias àquelas que ocorreram ao nível de democratização do seu acesso - dos meios e do público.

O Sublime, porém, não é uma pura invenção da modernidade. A ideia existe germinalmente na cultura clássica e importa resgatar essa história, para fundamentar também a sua validade nos tempos de hoje, supostamente pós-modernos. Fala-se de Pós-Modernismo em dois sentidos. Por um lado, em sentido 'cultural' e amplo, significando a crise das 'ideologias' e dos valores modernos do progresso científico e social. A partir desta decepção, emergiu uma cultura fragmentada de valores locais, ecológicos, étnicos, feministas, etc. - novos actores do tecido social, em detrimento do modelo ‘eurofalologocentrico’ dominante.

Outra perspectiva, consideravelmente diferente, é a do uso do termo 'pós-moderno', em sentido 'artístico' estrito: a segunda metade do Século XIX trouxe consigo a modernidade artística que se traduziu na criação das vanguardas; um modelo de constante inovação e subversão artística que viria a apresentar sinais de falência e rejeição cem anos mais tarde. A rotura com o modelo das vanguardas modernas representaria então a pós-modernidade artística - que alguns vêem também como a morte da arte. Esta, traduz, a nosso ver, uma falsa questão, porque não se trata da dissolução da actividade artística, nem das suas funções de denúncia, crítica e intervenção, nem, muito menos, da fruição estética por parte do público. Portanto, o que terá deixado de existir não foi a arte, mas porventura apenas uma determinada concepção da arte. Ora, quer a crítica como a estética, não têm que vergar-se a esta profecia de estranhas ressonâncias («a arte morreu»), mas encetar um trabalho sério de recuperação do que a arte é hoje.

Isto implica repensar a arte de acordo com o outro axioma da pós-modernidade, no seu sentido cultural lato, prestando, portanto, atenção, à cultura de massas, nas suas vertentes popular e alternativa. Os artistas sempre utilizaram as tecnologias que encontraram ao seu dispor. A electricidade, a imagem projectada, a informática e a electrónica são as novas tecnologias de hoje. E aqui, há que entender a mudança fundamental de perspectiva: não podemos continuar apenas a falar de ‘belas-artes’. As artes do nosso tempo são o cinema, as músicas urbanas amplificadas, a dança contemporânea na sua atitude e dimensão de libertação do corpo, etc. É por aqui que deveremos procurar destilar a relação sobre o sublime e a pós-modernidade. É nessa aventura que embarcamos.

2 – «Contributo para uma Genealogia do Sublime».

No horizonte desta pesquisa, e contemplando o período abrangido pelo corrente plano de trabalhos, não atingiremos o momento terminal da nossa investigação sobre «Sublime e Pós-Modernidade», que apenas será concluída no ano lectivo seguinte, ou seja, em 2007-2008.

No entanto, como explicámos antes, a Tesina deverá ocupar-nos até final do ano civil em que nos encontramos. Portanto, a partir de Dezembro, ou, como máximo, Janeiro vindouro, já começaremos a trabalhar no Projecto Final da Dissertação, o que nos possibilita ainda vários meses de trabalho activo e profícuo neste sentido.

O tema fundamental da nossa pesquisa é «Sublime e Pós-Modernidade», concretamente na senda de procurar demonstrar que os princípios de liberdade artística da Estética do Sublime, pelas suas premissas de experimentação, miscigenação e debilitação de critérios e tendências dominantes dão a fonte, inspiração e timbre da irrupção do momento pós-moderno, não só ao nível do campo das artes, como mais radicalmente em todo o sentido e amplitude do espectro cultural. O Sublime, experiência da tensão, do desequilíbrio, da contradição afectiva e da nossa própria finitude ante o mundo exterior, seria assim a matriz e a clave de toda a Condição Pós-Moderna, dos seus horizontes de abertura, des-legitimação e coexistência de linguagens, e até mesmo da parca inteligibilidade e das angústias que lhe estão apensas.

Este debate entre a pós-modernidade e a sua filiação sublime, concentrará, compreensivelmente, os nossos esforços hermenêuticos e criativos sobre o tempo em que vivemos, a nossa época presente. Mas esse será o ponto de chegada do estudo e não o de partida. Por conseguinte, antes de abordar o sublime sincrónico, cumpre-nos deslindá-lo diacronicamente.

Dito de outro modo, o objectivo deste primeiro lanço, que nos ocupará as primeiras estações da pesquisa, será encetar uma arqueologia ou genealogia da ideia estética do Sublime, abarcando os seus dois momentos históricos cruciais: o da origem formal, na Antiguidade Clássica, e aquele de maior e mais avultado tratamento filosófico, durante a Modernidade europeia, através de autores como Edmund Burke e Friedrich Schiller, mas sobretudo Immanuel Kant. De facto, é nos Séculos XVIII e XIX, tendo-se constituído a própria Estética como uma disciplina filosófica alicerçada e plena, que o Sublime ganha também a sua consistência e expansão como categoria e admirável motivo do pensamento.

2.1 – O momento clássico: o sublime edificante

Quer os gregos quer os romanos já possuíam um termo para designar o Sublime. A própria origem etimológica procede do Latim: sublimen, sublimis, que significa «elevado, grandioso, excelso» ou inclusive «pairante, suspenso no ar»[2]. Isto quer dizer que, credivelmente, já o distinguiam de outros patamares de apreciação e consideração estética, como seja por exemplo o Belo.

De facto, na Poética, o primeiro tratado exclusivamente sobre temas de estética da literatura ocidental – e mundial – Aristóteles traça uma tipologia da beleza, estabelecendo que um dos seus requisitos, para além da harmonia e do equilíbrio interno entre as partes, condições quintessenciais, é a questão da escala ou da proporção: não poderá ser considerado belo um objecto que não possua uma dimensão que seja humanamente aceitável, perceptível, perscrutável. Ou seja: o micro e o macroscópico ficam excluídos da geografia do belo. É claramente uma porta aberta à monstruosidade e à ininteligibilidade que se irão reclamar séculos mais tarde para matizar a sublimidade.

Contudo, e apesar de se considerar usualmente erróneo falar de uma Estética antes de Baumgarten, na própria antiguidade clássica encontramos já o sublime como elemento fecundo de teorizações de índole filosófica.
A prová-lo, o texto mais antigo que existe sobre o assunto, precisamente dito Tratado do Sublime[3]. A autoria deste opúsculo nunca foi suficientemente aclarada[4], mas é certo que foi escrito em resposta a outro tratado anterior, totalmente perdido, de um tal Cecílio de Caleacte. A ruína do património
greco-romano é largamente conhecida, mas este facto outorga-nos a consciência de que porquanto seja o texto mais antigo conservado sobre o tema, não foi o único e nada nos impede de pensar que pode ter sido uma questão abundantemente discutida e abordada naquela era.

Seja como for, temos que nos cingir ao que existe, que não é, em todo o caso, insignificante. O livro baseia as suas teses na análise da retórica, oratória e literatura, mas menciona episodicamente outros sectores de actividade estética, permitindo assim uma leitura mais ampla do seu campo de aplicação. O autor, ignoto, preconiza o sublime como o cume das formas superiores da produção literária e artística, caracterizado pelo estilo elevado, a excelência e a grandiosidade.

Para alcançá-lo, são necessários expedientes e destrezas técnicas próprias de cada arte, mas a condição realmente inalienável concerne à riqueza espiritual, à grandeza de ideais, à personalidade moral caracterizada por nobres valores e sentimentos. De acordo com o Tratado, de facto, a arte deve conter um carácter instrutivo e edificante, com conteúdos e correlatos pedagógicos, sociais e morais, o que se cumpre de forma assinalável no sublime, que pela sua veemência emocional e passional executa um inextricável efeito de persuasão – e formação - sobre os leitores ou espectadores.

Para Longino, ou quem tenha escrito a obra, a existência substancial do sublime aprecia-se pelo feito de que é alvo de uma experiência universal. Activa-se por si mesmo, através da sua própria força e potência, provocando um efeito combinado de deleite estético e sentimentos moralmente elevados. Neste sentido, a sublimidade não é apenas uma experiência do foro artístico, mas detém um profundo alcance espiritual e ontológico, porque coloca o humano em contacto com a divindade e com a sua própria capacidade de transcenção.

Este é um dos elementos que certamente vai permanecer vivo nas ulteriores teorias que resgataram a insígnia do Sublime na idade moderna: através da experiência estética, o humano pode ir mais além de si mesmo, acede à ultrapassagem dos seus limites, aspira à sua própria superação.

2.2 – Kant, naturalmente sublime.

Depois de séculos de apagamento, o gosto estético e o Sublime voltaram a ser um terreno fértil e cultivado pela Filosofia com a entrada na Época Moderna. O chamado Século das Luzes vislumbra-se emblemático e crucial neste processo. Não só teve êxito Baumgarten lançando o termo Aesthetica à acepção que pontificou e hoje lhe conhecemos, como Edmund Burke e outros resgataram, cimentaram e influíram com pertinência e habilidade o debate sobre o Sublime.

De permeio, Immanuel Kant, como eivado pensador do Iluminismo nas suas múltiplas dimensões, também participou, e de forma destacada, nesta tendência. Através da sua Crítica da Faculdade do Juízo, a terceira e definitiva obra de fundo do professor de Königsberg, bem como de alguns opúsculos que incidiram especificamente sobre a matéria, e contanto que não usasse o termo Estética no sentido que acabou por vingar, Kant estabeleceu uma autêntica teoria do Sublime, cujo ponto de saída é marcadamente a sua contraposição com a noção de Belo.

Na verdade, se Aristóteles impôs como condições para o belo o equilíbrio e a proporcionalidade, e a hipótese longiniana do sublime, por outro lado, invoca que este realiza uma experiência que aponta para a auto-superação ontológica do ser humano, ao mesmo tempo que apela ao divino e ao cósmico, em boa medida, o caminho para a caracterização mais global desta categoria estética já dispunha de algumas balizas por entre as quais arremeter.

O perfil e o rigor sistemáticos da obra de Kant impulsionam o autor a estabelecer detalhadas tipologias, portanto, para o Belo e para o Sublime. Sem diferir dos cânones clássicos, a beleza implica serenidade, acabamento, harmonia e mesura. O Belo entra em conformidade ou adequação com as nossas faculdades da imaginação e do entendimento, o que nos provoca um prazer regrado, tranquilo, pacífico, uma sensação de proporção, conveniência e ordem. As duas faculdades citadas encetam, face ao sentimento da Beleza, um livre jogo moderado e modelado por um equilíbrio interno perfeitamente encaixado adentro dos seus parâmetros de possibilidade. Por isso, move-se de uma experiência finita e mensurável, que nos produz um estado de calma fruição e apaziguamento.

Ora, a disposição do Sublime é imensamente diferente. Tanto como o belo concerne à forma do objecto, à sua limitação, o sublime, contrariamente, acha-se nos objectos sem forma, na medida em que produzem sensações de ilimitação e incomensurabilidade. Trata-se, por conseguinte, de uma experiência arrasadora e avassaladora, que envolve perturbação e tensão, que impele ao transcendente e ao Infinito. O sublime gera uma convulsão, um abalo, um estremecimento, um efeito concomitante de atracção e repulsa relativamente ao objecto detonador.

Assim, enquanto a Beleza se pauta pela conformidade, a Sublimitude é nevralgicamente inadequação, a sua potência desafia e transborda os limites, dando origem a sentimentos híbridos de prazer e desprazer, dor e alegria, desequilíbrio e deleite. Agita-se de uma experiência estética total, ecléctica, absoluta, que uma magnitude incomparável. E na sequência do que já apontava o texto longiniano, o seu impacto vai mais além do plano da fruição do gosto: por intermédio do sublime, o sujeito ensaia e prova a sua própria superação, acercando-se a outros níveis de consciência e espiritualidade, guiado pelas ideias radicais da liberdade, da transcedência e do Infinito, que nos enlevam da nossa condição de ente ínfimo ante o cosmos e as suas forças ingentes.

A valorização do Infinito faz com que Kant encontre na Natureza os fenómenos que despertam a experiência sublime, podendo ser de dois tipos: o sublime matemático e aqueloutro dinâmico. O primeiro está ligado ao facto de que certos objectos físicos nos inculcam a noção de uma grandeza espacial ou temporal extrema, a qual não possuímos capacidade de medir, pelo que imediatamente nos avizinham à ideia de Infinito. Por sua vez, o sublime dinâmico surge enlaçado às manifestações mais violentas, terríveis e ameaçadoras da natureza, essas que patenteiam a nossa própria fragilidade individual, entregando-nos à angústia, à turbação, à inquietude. Resulta, afinal, que este desassossego pode ser a fonte do prazer estético mais fundamental e arrebatador, que nos eleva a razão e o espírito até vórtices da existência antes insuspeitáveis.

Este ínclito anseio pela fúria devastadora da Natureza e pelos seus elementos intrépidos, como é conhecido, abre passo à estética do Romantismo, com o seu apego ao meio ambiente como locus horrendus, a todas as imagens do belo horrível e sturm und drang alemão, ou seja, a permanente tensão entre desfrute e pena, agrado e desagrado, contemplação e choque. Kant pretendia desvincular aberta e teoricamente o sublime da arte[5], mas as gerações que lhe sucederam, tanto no espaço de língua germânica, como no resto da Europa, não o seguiram nesta pretensão. Desafiando-o e negando-o, reconduziram o sublime ao seu lugar próprio e de relevo no domínio da criação e da recepção artística. E a estética fez-se sublime.



[1] - Transcrição do texto redigido e apresentado por mim à FCT aquando da Candidatura à Bolsa de Doutoramento.

[2] - no idioma helénico os dicionários registam os correspondentes UyoV e UyhloV como as ocorrências mais frequentes.

[3] - Ou também Sobre o Sublime.

[4] - É habitualmente atribuído a Dionisio Longino ou a ‘Pseudo-Longino’ mas a questão mantém-se insolúvel, até porque parece que «Dionísio» e «Longino» eram nomes bastante comuns na época aceite para a sua composição, o Século I d.C..

[5] - Se bem que, por lapso ou por estranho paradoxo, o filósofo prussiano engloba, nos exemplos de experiência do sublime, colossais obras de arquitectura, como as Pirâmides egípcias ou a Basílica de São Pedro no Vaticano, que de resto o próprio Kant nunca presenciou pessoalmente. Cf. KANT, Crítica da Faculdade do Juízo, §26, B 87-88.

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