11deJulho

tendências, souvenirs, beijos esparcidos aos precipícios dessa coisa rugosa que muitos chamam amor, solilóquios, colóquios, provocações e invectivas, enfim, de tudo um pouco, daquilo que sou

Monday, May 08, 2006

ENTREVISTA com ALEXANDER SOKUROV

* Uma vocação humanista

- ou também: A imagem como destino

Por Alexandre Nunes de Oliveira *

Barcelona em plena primavera, abrindo portas e salas à sétima arte do Velho Continente. Alexander Sokurov, o mais importante cineasta russo da actualidade, foi um dos homenageados do CICEC – I Congresso Internacional de Cinema Europeu Contemporâneo, organizado em conjunto pelo Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona (CCCB) e pela Universidade Pompeu Fabra (UPF), também da capital catalã.
Afável, calmo, até discreto, agradecia todas as atenções com um sorriso e respondia como lhe era possível às solicitações. Foi ouvindo com abnegada tranquilidade os elogios que lhe rasgaram os especialistas, atribuindo-lhe o estatuto de «superior estilista do cinema contemporâneo», «demiurgo de uma experiência filmíca totalmente inovadora, mesmo nos círculos mais alternativos», e «personalidade única e absolutamente singular, autor de um cinema contemplativo, filosófico, profético e de autênticas dimensões cósmicas».
Já antes de que se nos acercássemos, advertira do seu escasso conhecimento das principais línguas de uso internacional. Por isso, fez-se acompanhar constantemente de uma tradutora improvisada, uma compatriota que exerce como professora no departamento de filologia da UPF, e que foi cumprindo a missão com zelo até acusar uma certa exaustão.
O realizador desdobrou-se em conferências de imprensa, apresentações dos seus próprios filmes, encontros com estudantes. Uma agenda apertada que impossibilitou que todas as perguntas obtivessem respostas. Mas a conversa aqui fica transcrita, à guarda da Conceito.


PERGUNTA: Alexander Sokurov é hoje um dos realizadores mais respeitados no mundo, considerado um dos maiores estilistas do cinema contemporâneo, e largamente apreciado em círculos cinéfilos, académicos e intelectuais. Como se chega a ser o que se é?

SOKUROV: No cinema, sou um homem acidental. Quando acabei a escolaridade obrigatória não sonhava em absoluto com o cinema. Nem sequer o apreciava muito. E mesmo hoje não penso que seja a arte fundamental, essa é a Literatura. Na altura, porém, o queria era ser realizador de rádio, concretamente de rádio-novelas. Essa paixão vinha-me do facto de escutar assiduamente as adaptações para rádio das grandes obras literárias de escritores russos, por isso fascinava-me esse mundo.

P: Portanto há uma origem ligada à narratividade, à palavra, à literatura?

S: Para dedicar-se à cultura, em qualquer das suas facetas ou vertentes, deve-se possuir um nível cultural alto, um conhecimento grande e aprofundado dos valores humanísticos, em suma, o que se diz um bom «background». A minha família, de meios modestos, não me oferecia possibilidades culturais, por isso tive que dedicar-me primeiro a cultivar-me, a fim de dispor de uma legitimidade moral para dedicar-me à actividade artística. Mudei-me para Moscovo onde me licenciei em História e seguidamente entrei na Escola de Cinema.

«No cinema, sou um homem acidental, mas trabalhar no cinema tornou-se o meu destino.».»


P: Foi então que sentiu que poderia encaminhar através do cinema esse impulso criativo, esse apelo pela arte?

S: Sim, a partir de então trabalhar no cinema tornou-se o meu destino. Através do cinema posso formular perguntas e dar sentido a problemas que me inquietam e esboçar alguma resposta. Mas é tremendamente difícil. É necessário uma visão humilde, sensata, não ambições sem sentido. A arte, sempre a entendi com muita seriedade. A arte não é uma frivolidade, não é uma conversa de café. A cultura boémia, por exemplo, apresenta o seu interesse, mas não está necessariamente vinculada à arte. O artista pode ser boémio, mas o boémio não é forçosamente artista, e é fácil recair-se na mediocridade e na decadência. Portanto, tive que buscar cumprir ou preencher as condições essenciais para o exercício da arte: cultivar-me, expandir os meus conhecimentos, aprender. Entendo que se trata genuinamente de uma condição fundamental para quem se queira dedicar à arte.

P: Refere-se portanto a uma visão nobre, elevada, da Arte, capaz de transformar o ser humano, de transfigurá-lo e transcendê-lo, de levá-lo mais além dos seus horizontes quotidianos?

S: Sim, inclusivamente podíamos falar duma componente de espiritualidade. Antes, o ser humano cumpria esta função na sua vertente religiosa, mas a religião praticamente já perdeu essa função. Por isso, cada um tem que dedicar-se a alcançá-la por si mesmo, e cada um tem que ser apto para responder por si mesmo. A arte é o mais elaborado e avançado que temos nesse aspecto, é o elemento mais forte da espiritualidade humana.

«A arte é o elemento mais forte da espiritualidade humana.»


P: Antes falou também do valor da literatura, como a mais importante das artes...

S: Sim, mas deixe-me explicar essa minha devoção à literatura através da comparação com o cinema. O mais importante no cinema é o tempo. Mesmo para o espectador. As pessoas pensam que para ver um filme é preciso pagar com dinheiro. Isso é verdadeiramente irrelevante. Não se paga em dinheiro, mas em tempo. O tempo é irrepetível: uma hora e meia na vida de uma pessoa, ninguém nos devolverá esse tempo. Eu penso que é um preço elevado, muito elevado, e para aceder à arte, de forma geral. Ora, o cinema é uma das artes claramente menos desenvolvida, menos perfeita desde o ponto de vista formal...

P: Isso é um aspecto altamente discutível...

S: Este talvez seja, mas não me pode negar que o cinema apela unicamente à passividade do espectador!... Além do mais, 95% do cinema actual não tem qualidade, é banal, está dominado pela violência sem sentido, ou pela leviandade. Dos restantes 5%, 4% digamos, merecem alguma atenção. E só realmente 1% do cinema que se faz hoje em dia é o que temos que ir ver. Ainda assim, e era aqui que eu queria chegar, se compararmos este cinema supostamente imprescindível com a obra de Goethe, Cervantes ou Tolstoi, o cinema tem muito pouco para dar.

P: Custa-me crer que um dos realizadores mais conceituados da actualidade tenha uma visão tão restritiva sobre as virtualidades do cinema, uma arte tão do nosso tempo...

S: Entendo a sua decepção. Naturalmente é uma questão interessante e complexa, determinar se o cinema é arte, perguntar se existe o cinema como arte. Existe o cinema como forma cultural, isso está claro, porém como arte é discutível. Mas consideremos então que o cinema é arte, tampouco quero negá-lo absolutamente. Em última instância, a arte tem um papel formativo muito forte e extraordinariamente importante, do qual pode depender o nosso futuro. Por isso, a arte contemporânea encontra-se numa encruzilhada e pode ir em qualquer destas duas direcções: a primeira, a que parece estar a dominar, é fazer do ser humano um criminoso. A outra, é situar e instruir o homem nos seus próprios valores mais profundos, inscrito no seio de uma tradição humanista, sendo que a arte europeia é o fundamento do humanismo. Assim, e voltando à questão de antes, teremos que considerar a existência dum vínculo inseparável entre cinema e literatura. O artista deve por a literatura por cima do cinema. Por cima de qualquer actividade artística deve estar a literatura, ela é o fundamento de toda a criação estética.

«o cinema é uma das artes claramente menos desenvolvida, menos perfeita desde o ponto de vista formal, [...] o cinema tem muito pouco para dar.»


P: É realmente admirável a sua dedicação pela literatura!...

S: Repito: a fonte de toda a arte é a literatura. É pela literatura que começam a arte e a cultura. Sem literatura não há humanidade nem civilização. A literatura é como uma coluna vertebral de toda a vida cultural e humanista. É a mais livre e íntima de todas as artes, a arte que mais desenvolve o ser humano. Todas as outras formas de arte põem o homem em situação mais passiva. Quanto mais a humanidade se afaste da literatura, mais se acercará do caos, do vazio, da inanidade. E hoje, tristemente, a literatura ocupa um lugar muito pequeno no nosso dia a dia. Como preferimos a passividade, damos demasiada importância e atenção ao cinema.

P: Mas a cultura europeia de que fala, também possui uma inestimável e umbilical componente visual. A história da pintura é longa e decisiva, e depois houve a invenção da fotografia, e, enfim, do próprio cinema...

S: Não pode negar-se. Claro que o cinema também é devedor da pintura. No cinema, a ilusão óptica da tridimensionalidade sempre desafia o realizador, mas é uma mentira absoluta. Todos sabemos que a fita é plana e que a tela de projecção também. A composição e a perspectiva (ou a falta de ela, o uso do plano bidimensional, é muito difícil de lograr no filme) são muito importantes para o cinema e reportam ao influxo da pintura no cinema. É enorme a influência de Rembrandt ou Da Vinci, por exemplo, através da perspectiva... dos planos nos quais o fundo e os personagens estão em íntima relação. De resto, é evidente e indesmentível que o cinema recolheu elementos de outras artes. Absorveu a música e a fotografia, e naturalmente, muitíssimos aspectos da representação teatral. Por isso é importante que um profissional de cinema seja conhecedor da grande tradição artística. Mas o melhor e mais autêntico contributo do cinema é o tempo, é o passo do tempo. Para penetrar a fundo no enigma que é homem, também é necessário conhecer o que é a passagem do tempo. Quem sabe gerir o tempo, será um realizador sábio e grande.

P: Pode explicar-me melhor esse aspecto sobre o tempo? Refere-se à duração do filme, à sequência da montagem, ao tempo como uma espécie de entidade ou substância?

S: Filosoficamente talvez tenha que reconhecer os meus limites. Mas trata-se de uma intuição que decorre dos meus anos de trabalho, que me dão alguma legitimidade crítica. Vamos a ver: nunca o escritor nem o pintor, nem o compositor, nunca nenhum artista chega verdadeiramente ao fundo da essência das coisas. Cada um deles se detém num momento, ou num pormenor, ou diante de uma passagem. Aquilo que se pode chegar é aos detalhes da vida, não à sua plenitude. Nesta medida, o cinema até dispõe de um potencial superior, que ainda não foi totalmente actualizado: é que o cinema sim, pode mostrar todos os detalhes. Dá muito trabalho, mas pode-se recriar tudo - o contexto artístico, a atmosfera física e emocional, a arquitectura, o espaço, um enquadramento filosófico... Construir todos os detalhes da vida é o maior desafio do cinema enquanto arte. E por cima de todos esses elementos da vida, entra o factor do tempo, como o mais proeminente. Os limites do tempo nunca se poderão dominar ou controlar de forma absoluta. Podem-se experimentar fazer tipos de montagem diferentes, que não se vai nunca esgotar o factor temporal. Impõe-se ante as infinitas ambições dos cineastas.

«A nossa compreensão da política é escassa. Só a arte pode reflectir de forma adequada sobre certos fenómenos.»


P: A sua tarefa, como realizador, portanto, é desafiar o tempo? É esse o sentido secreto do seu cinema?

S: Desafia-se o tempo, tentando entender, escutar, olhar. Urge estar de acordo (ou em acorde), sintonizar, estar silencioso, ocultar-se. Há que aceitar a situação, lidar com o possível do humano nas circunstâncias da vida. O filme onde levei mais longe este esforço foi a Arca Russa. Foi um intento de negar a ordem do tempo – assumir que o tempo não se pode fracturar, não se pode violentar, montar, fusionar... Mas subsiste o enigma: é difícil saber que atitude tomar face ao tempo. Está para vir o director de cinema que consiga solucionar cabalmente este problema. Terá a essência do cinema na sua mão.

P: Antes criticava ferozmente o cinema, dizia que era uma arte imperfeita, que a maior parte do cinema que se faz é vago e sem interesse, mas agora está-lhe a fazer o maior dos elogios, a outorgar-lhe um ingente potencial artístico...

S: Que lhe posso dizer? Somos um pequeno grão de um enorme edifício que é a cultura. A arte já existe, já se fundamenta a si mesma, os seus parâmetros principais já estão delimitados. O artista aporta pouco. Embora por outra parte, mesmo nas actividades ou labores mais elaborados da arte, o resultado harmonioso depende frequentemente do talento do artífice. Onde está o limite? No talento ou na técnica? Confesso que não pensei o suficiente sobre o tema, que desconheço a resposta final.

«Hitler não é um não é um caso isolado, é um problema global da humanidade.»


P: Tentemos aprofundá-la. Exactamente qual pensa que seria a função ou o estatuto do artista? Um técnico? Um criador iluminado? Pode ser também um referente ético?

S: Em política nem tudo está permitido. Mas na arte gerou-se o mito que sim, que o artista pode dizer tudo o que quiser. Isto obviamente não pode ser assim. O artista deve ser livre, mas não pode demitir-se das suas responsabilidades. A arte cruza fronteiras e exerce uma força muito influente. Hoje temos na comunicação social um exemplo do que não se deve fazer. Os média fomentam prevalecentemente a decadência, a abominação. Boa parte da reacção do mundo muçulmano face ao Ocidente deve-se a pura manipulação ideológica que se produz de ambos os lados. Ainda estamos a tempo de travar este caminho.

«Por cima de qualquer actividade artística deve estar a literatura, ela é o fundamento de toda a criação estética. [...] É pela literatura que começam a arte e a cultura. Sem literatura não há humanidade nem civilização. Quanto mais a humanidade se afaste da literatura, mais se acercará do caos, do vazio, da inanidade.»»


P: Através da arte, das suas virtualidades formadoras, enlevadoras, catartíticas?

S: Temos que crê-lo. Nessa aspecto não há arte antiga ou nova, a arte foi criada e permanece. Ao longo do tempo, pode-se apresentar e representar o ser humano de formas novas através da arte, mas o artista autêntico tem que aspirar a comprometer-se com o marco geral da arte, que é expor e trabalhar com os valores profundos da cultura e da humanidade. Isto constitui uma limitação ao trabalho do artista, porque é mais o que ele deve fazer do que aquilo que ele pode fazer. É menos livre desta forma.

P: Mas sobre o cinema actual mantém a sua posição de antes? É realmente manco de qualidade? Quais os filmes que merecem ser vistos?

S: Há cada vez menos gente que busque um saber humanístico profundo no cinema. Falo não só dos espectadores, acontece mesmo entre os críticos e os profissionais. O cinema pode ser sério e profundo, mas hoje o tipo dominante é essencialmente lúdico e de diversão, repleto de imagens de violência e desumanização.
As pessoas hoje associam o cinema à violência e à pornografia. Esta última até é um mal menor, recai na escolha de cada um. Mas a violência exerce de facto muita influência sobre a vida dos humanos, trespassa uma agressividade que está muito presente, uma ideologia que de alguma forma contém inclusive o germe do terrorismo. A arte pode fomentar a tolerância, ou ser usada para promover a ignorância e o conflito. É o que sucede em certa medida actualmente na cultura muçulmana, para dar o exemplo que lhe estava referindo antes.

P: Se assumirmos que a sua obra não está nesse lado da barricada, ela perfila-se num contexto contra-corrente, move-se em círculos mais artísticos, autorais, ou alternativos. É-lhe fácil arranjar financiamento para os seus filmes? Tem bom relacionamento com os seus produtores?

S: O cinema que fazemos, eu e os meus colaboradores, não é caro, em termos de dinheiro não é muito custoso. Um filme como «A Arca Russa» seria muito mais caro fora da Rússia - quer na Europa, quer nos EUA. Uma vez agendados e disponibilizados, os recursos técnicos estão nas mãos do realizador, e este tem que fazer o filme em função das possibilidades reais, atendendo à qualidade profissional, ao nível elevado de criatividade, e ao nível estético do nosso cinema, esses são os critérios fundamentais.
O realizador, portanto, não está apenas a fazer um filme, mas também a gerir recursos técnicos e humanos. Dirigir a rodagem de um filme é uma questão económica, social e política. É preciso saber evitar os conflitos pessoais, por exemplo. Depois, uma constante que rodeia a obra de um realizador é que tem que romper muros muito densos... por isso há que trabalhar muito...

«o melhor e mais autêntico contributo do cinema é o tempo, é o passo do tempo. Para penetrar a fundo no enigma que é homem, também é necessário conhecer o que é a passagem do tempo.»


P: O seu cinema parece abordar com igual facilidade o documentário e a ficção. Poder-se-ia dizer que se sente à vontade em ambos os registos?

S: Na realidade entendo que não há muita diferença. Se há um aspecto que privilegio na minha obra, seria que ela aponta sempre numa direcção artística. Por um lado, respeitam às formas da arte clássica, já que busco alimentar-me da música, da pintura e sobretudo da literatura. Mas por outro lado, também procuro mostrar a vida contemporânea das gentes. Estes dois objectivos podem concretizar-se tanto no plano documental como no ficcional.

P: Preocupa-lhe então forjar um equilíbrio entre o passado, a tradição, por um lado, e a actualidade que o rodeia, por outro?

S: Sem dúvida. Estamos inscritos em ambas as coisas. Por um lado, uma grande tradição artística que devemos conhecer e respeitar. Mas por outro, estamos implicados num mundo e num tempo que é o nosso e devemos reflectir sobre eles. É por essa razão que disponho de um grupo de trabalho muito internacional, constituído por pessoas que conhecem a fundo a arte clássica russa, mas que ao mesmo tempo seguem de perto as novidades tecnológicas.

P: Mencionou especificamente a tradição artística russa. Acha então que, tematicamente, a gesta da Rússia seria a sua principal inspiração?

S: Sim. A Europa está hoje num processo de unificação, constituirá um espaço muito aberto. Isso poderá ser muito vantajoso no futuro, se as pessoas souberem tirar partido. Antevejo uma vida prometedora e maravilhosa. Ora, a Rússia está à margem deste contexto. É um país enorme, com uma imensa herança cultural. A Rússia, diria, é uma experiência única e singular, com grandes vitórias e derrotas históricas, um país que segue um destino particular, que muitos não conseguem entender. Mas sem dúvida, é um país que pode maravilhar e surpreender, e continuará a fazê-lo.

P: Nesse aspecto, portanto, acho que o cinema russo tem uma história e uma idiossincrasia próprias, que o fazem diferente do ‘cinema europeu’?

S: Estará mais próximo do cinema europeu que de outros cinemas... Mas acho que uma das tarefas da arte passa por proteger os interesses do país e da sua cultura, contra a cultura global, desvirtuada e expropriadora que hoje predomina...

P: Uma função de resistência, quer dizer?

S: Claro. A cultura não existe sem a arte. Esta é uma das suas dimensões mais importantes. Ao passo que a arte pode renunciar à cultura, avançar de costas voltadas para esta. É por isso que actualmente muita produção artística não expressa este carácter nacional da cultura. Dou-lhe um exemplo: praticamente não há filmes sobre as minorias étnicas que existem na Rússia, um país que muita gente não sabe que é linguística e culturalmente plural. Isto é lamentável. E de resto, também acontece na Europa, é um problema ignorado pelo cinema. Portanto, eu penso que deve fazê-lo: a arte deve apoiar e apoiar-se na cultura nacional.

«O artista deve ser livre, mas não pode demitir-se das suas responsabilidades.»


P: Realmente, no seu cinema, sobretudo nos primeiros filmes, figura bastante a imagem da Rússia como terra-mãe, enfim, pelo menos é uma leitura possível da forte presença que ocupa a Natureza no seu trabalho: Uma natureza imponente, que não é agressiva, mas serena, imutável, mas que acaba por opor-se à fragilidade do ser humano, que de alguma maneira o transcende e ofusca. O que nos propõe é uma reflexão sobre o destino humano, sobre a relação entre a Humanidade e o Cosmos?

S: De acordo. A Natureza sempre foi protagonista da arte asiática e de alguma arte russa. O cinema não é pois a primeira arte a descobrir e abordar dessa forma a natureza e a inferir a sua importância. Na verdade, procuro algo desse fio condutor entre a natureza e o humano: essa contraposição entre a natureza, a paisagem, e o rosto humano. A amplitude do espaço torna-se o sujeito, ou o protagonista, compenetrando-se com a figura humana.
A natureza também é esperança e constância. É algo importante e maravilhoso. No Homem não há esperança nem constância. A Natureza está na sua plenitude. Sem ser racional, ela tem as suas regras. O Homem muda constantemente, e não parece haver limite para o baixo e mesquinho a que pode chegar. O homem é o mais inteligente, mas não o mais importante. Na natureza há uma harmonia, e no entanto, é verdade que a natureza também pode ser violenta, pode prejudicar e destruir o humano. Mas vejo mais este impulso muito forte de harmonia, de constante renascer da vida.

P: Falou do baixo e mesquinho a que pode chegar o homem. Tem-se apontado que é esse o sentido da sua trilogia sobre os Ditadores da II Guerra Mundial, esse período ignominioso da história humana: Moloch sobre Hitler, Taurus sobre Lenine e Staline e o Solntse («Sol»), sobre o Imperador Japonês Hirohito.... Era realmente esse carácter vil e disforme da natureza humana que procurou retratar nestes filmes?

S: Vejo estes ditadores como um fenómeno muito complexo. De tal maneira, que seria tudo mais fácil se pudéssemos dizer que estes personagens não são do nosso mundo, que pertencem, para dizer algo, a outro planeta. Mas isso não é verdade. O problema central reside em que são humanos. Hitler não é um problema em si mesmo, não é um caso isolado, é um problema global da humanidade. Porque possivelmente, e infelizmente, ele não é uma excepção: Se ele chegou ao poder provavelmente é porque representa outros milhões de Hitlers potenciais que existem. O próprio Hitler não ocultava nada, Mein Kampf já continha todo o projecto nazi, e foi escrito antes de chegar ao poder. Neste sentido, também não podemos ver o Nazismo meramente como um fenómeno político do Século XX, é algo anterior, a nível de mentalidades, mas que foi madurando e acabou por sair à superfície da forma que todos sabemos.

P: Fellini (quem, curiosamente, à sua semelhança admitia ter chegado ao cinema por acaso e não por vocação, mas que depois o assumiu como o seu destino) também pensava dessa maneira. Dizia que o Fascismo não é na sua base um movimento político, mas «um estado de espírito, uma debilidade de carácter» e que existe muito para além de um determinado contexto histórico...

S: Desconhecia essa posição, mas parece-me correcta. A História, porém, não aprecia este tipo de leitura, porque normalmente se entende que o caminho do ser humano é a liberdade e não a opressão. Mas o problema existe e não pode escamotear-se. A nossa compreensão da política é escassa. Só a arte pode reflectir de forma adequada sobre estes fenómenos. E assim devolver na sua essência de pessoas comuns, inclusive vulgares e medíocres, a estes ditadores, para que as suas figuras possam ser entendidas.

«Dirigir a rodagem de um filme é uma questão económica, social e política.»


P: Acima de tudo, portanto, não abdica da função social, política e pedagógica da arte?

S: Evidentemente. A arte é como uma medicina: a medicina não julga, só dá um diagnóstico, uma história clínica. Deixa o julgamento aos outros, para que sejam eles a crer e a ter suas esperanças.

P: Antes aflorámos as noções de compromisso e liberdade na arte. Volto ao tema porque se a arte é controlada desde a política então esse objectivo clínico que acaba de referir estará em risco. Falo nisto porque começou a filmar ainda na era soviética e sei que experimentou problemas com a censura política e o descrédito das instituições...

S: Actualmente, não sofro nenhuma censura ou pressão, seja por parte do Estado, seja dos produtores. Mas claro que não foi sempre assim. Na época soviética tinha muitos problemas com as instituições que controlavam a criação artística, problemas que agora não tenho. No entanto, não creio que isso tenha constituído um ponto de inflexão nas minhas preocupações estéticas, que isso tenha influído na minha carreira. Custa-me pensar que haja uma relação entre a minha obra actual e a práxis política actual do meu país. Preocupam-me os problemas mais ancestrais da Rússia.

«A natureza é esperança e constância. É algo importante e maravilhoso. No Homem não há esperança nem constância.»


P: Mas há pouco dizia-me que se interessa pela vida das gentes contemporâneas... Que problemas ancestrais são esses?

S: Referi-me concretamente à situação política. Não é que não me interesse por essas questões, dizia era que não vejo uma relação directa ou concreta entre esse estado de coisas e minha evolução artística. a Rússia passa presentemente por problemas políticos e económicos complexos e não vejo uma saída clara para esta situação. A juventude tornou-se muito agressiva, gerou-se muita criminalidade. É uma consequência da pressão que o Estado exerce sobre as pessoas, que me parece ser totalmente diferente do que se passa na Europa. São os próprios russos que terão de encontrar a saída, senão não há saída. Quando falava de questões ancestrais reportava-me a algo que já lhe comentei, que a Rússia é um país enorme, a nível de superfície, com uma grande diversidade cultural, que considero uma riqueza, e que nem sempre tem sido devidamente considerada nem valorizada.

P: Relativamente a essa ideia de que terão que ser os russos a reconhecer e solucionar os seus próprios problemas, poder-se-ia dizer que é um dos fios condutores de Mãe e Filho? Neste filme vemos uma mãe gravemente doente, que podíamos interpretar como a Rússia, no seu actual cenário de crise, e que é levada em braços pelo filho – ou seja, as novas gerações, que detém essa responsabilidade de superar as dificuldades de fazer avançar o país, de reconduzi-lo à sua identidade ou grandeza... Nesse caso, filme seria uma acuradíssima metáfora política, sem usar uma única frase ideológica...

S: Já não é a primeira vez que me comentam essa leitura. Acho-a inteligente, mas também um pouco rebuscada. No final, a mãe morre, e também não penso que a Rússia incorra nesse perigo! A Rússia, como lhe apontei, dispõe de uma pluralidade cultural imensa no seu território nacional, além de uma colossal tradição artística e cultural. Mas sempre teve uma situação política, social e económica grave. Dá-me a sensação que nunca houve um político de êxito em toda a história da Rússia! Mas asseguro-lhe que não tinha nada disto em mente quando realizei Mãe e Filho. Neste filme, tal como em Pai e Filho, o que me interessou foi perscrutar o olhar da intimidade nesta relação humana fundamental que existe entre pais e filhos, procurar o amor e a ternura, enfim, abordar a questão na relação no plano psicológico, emocional e espiritual, como um retrato dos afectos que podem existir e perdurar neste relacionamento tão estreito e essencial. No caso da figura da Mãe é bastante mais evidente, e foi por isso que também senti necessidade de dirigir um segundo filme, sobre as relações entre um pai e um filho, para mostrar um modelo de pai que infelizmente não é muito trabalhado na arte, que no fim de contas socialmente está desacreditado, mas que creio importante, sumamente importante - ver como a figura do pai também pode ser sinónimo de afecto, carinho, cuidado e proximidade.

««Custa-me pensar que haja uma relação entre a minha obra actual e a práxis política actual do meu país. Preocupam-me os problemas mais ancestrais da Rússia. A Rússia é uma experiência única e singular. Mas nunca houve um político de êxito em toda a sua história!»»


P: O nosso tempo está a acabar. Quer falar-me um pouco dos seus projectos futuros?

S: Continuarei com a tetralogia dos ditadores. Haverá um filme mais, um quarto filme, mas de momento não quero entrar em detalhes. E prosseguirei também com a trilogia das relações familiares, falta um filme, que será sobre a relação entre um irmão e uma irmã.

P: Bom, teremos que terminar. Dentro de pouco falará também aos estudantes de cinema e audiovisuais desta Universidade. Que lhes dirá? Que tem a dizer a um jovem realizador que agora se aventura para isso? Aproveito para perguntar também se gosta de ensinar ?

S: Não tenho experiência como professor. A razão pela qual não dou aulas é porque não creio que seja competente para isso. Mas apesar de tudo gosto muito de participar nestes encontros. O que direi a estes jovens, se me quiserem escutar, é que não tenham medo de trabalhar e de equivocar-se. A arte não é demagogia, é um trabalho íntegro e sério. Há que trabalhar e aprender com perseverança, sendo necessária uma ampla vocação e formação humanísticas. A parte técnica pode-se dominar razoavelmente bem em dois anos. Mas é preciso não confundir a arte com a sua parte técnica. O mais importante é a constância, saber fazer perguntas, não ter medo da sua própria independência como criador.

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* - Entrevista elaborada por Alexandre Nunes de Oliveira, a partir de duas conversas com o realizador Alexander Sokurov nos dias 2 e 3 de Junho de 2005, no Centre de Cultura Contemporània de Barcelona (CCCB) e na Universitat Pompeu Fabra, também naquela cidade, por ocasião do CICEC – I Congrés Internacional sobre el Cinema Europeu Contemporani, no qual Sokurov foi um dos homenageados.
Alguma da informação foi completada ou enriquecida com declarações do cineasta produzidas nas conferências de imprensa e na prelecção aos alunos da referida universidade.
Apresentamos também os nossos agradecimentos a dois docentes da citada instituição académica: o Prof. Domènec Font, organizador do Colóquio, e à Professora Tamara Djermanovich, pelo seu notável esforço de tradução in loco entre o castelhano e o russo.

Tuesday, May 02, 2006

ALEXANDER SOKUROV - El Cinema Estelar

ALEXANDER SOKUROV - El Cinema Estelar


Alexander Sokurov nació el 14 de Junio de 1951, en Podorvikha, un lugar de la remota Siberia, como le gusta destacar. Su pasión fundamental fue desde temprano la literatura, y cuando se mudó para Moscú, a fin de licenciarse en Historia, llevaba la ilusión de trabajar en la radio. Afortunadamente para nosotros, que seguimos con deslumbramiento su obra, la Sétima Arte se tornó en el camino que trilló.

De forma singular, nos legó hasta ahora películas intensas, plásticamente soberbias – la fotografía, que atinge cromatismos improbables, está trabajada en maneras innovadoras y radicales, mediante la ayuda de filtros y distorsiones, hasta provocar efectos capaces de nos hacer ver el mundo de otro modo; la música, con fragmentos, mezclas y colages de sinfonías irreconocibles. Es un cine de pequeños detalles y grandes obras. Luminoso, pleno, perfecto.
Su primer largo-metraje, «La Voz Solitaria del Hombre» (
Odinokiy golos cheloveka), data de 1978, correspondiendo al trabajo de final de carrera, que ha merecido la incomprensión de los responsables de la escuela moscovita, de tal forma que su exhibición fue prohibida y el film estuvo inclusivamente a punto de ser quemado. Quien lo haya visto, con nosotros podrá opinar que esa pierda sería criminosa para la historia del cinema, una vez que, además de constituir un debut tremendo, ya contiene muchas de las líneas conductoras de la estética y del imaginario de este autor, entonces claramente influenciado por el maestro Andrei Tarkovsky, a quien de resto Sokurov no escondió una dedicatoria. El apoyo moral del autor de «Solaris» y «Andrei Rubliov» habrá sido, en realidad, decisivo para que aquél que era al tiempo su discípulo no renunciara ante los óbices y el desprecio institucional. Mas el giro político llevado a cabo con la Perestroika ha permitido al joven director siberiano recuperar la obra, pasándola remasterizada en el emergente Festival de Locarno, en Suiza, donde recibiría el Gran Premio del Jurado, en la edición de 1987.
Viendo a «La Voz Solitaria del Hombre», que está basado en textos del escritor Andrei Platonov
[1], nos damos cuenta que se trata de un título programático. La humanidad tiene voz, produce discursos y textos, pero esa voz es solitaria, no si queremos silenciosa, porque dice al final tan poco, en la medida que su eco es demasiado corto, su alcance limitado, sus repercusiones diminutas en el tiempo y el espacio. La palabra, tal cual la acción antropoide en general, son efímeras, locales, inconsecuentes, en especial ante aquella Naturaleza inmensa que permanece estática y ajena - pero que sobretodo permanece - mientras al individuo humano no resta sino vivir absorto por la pasividad, no fustigado por la inquietud que se traduce en la búsqueda continuada de algo que nunca se encuentra no logra (hay personajes que nos hablan reconociendo que ya han muerto, tal es la inutilidad de la palabra – y de la acción), en fin, un vivir lapidado y dilapidado por la angustia, por el desespero, por la frustración, por la ausencia de un sentido real que modele y impulse la existencia.
Empezó así el recorrido de éste que es uno de los directores más apreciados de la actualidad, debido a la radicalidad, originalidad y persistencia de su trabajo. De Tarkovski, asumida y principal influencia originaria, Sokurov ha recogido el interés, la fijación, por temas metafísicos que afligen lo humano en su destino esencial, tal como una cierta psicología, profunda, inhóspita, transmitida a través de silencios, de miradas largas no bruscas, de gestos elocuentes, de palabras intangibles y enigmáticas. Y claro, esa presencia absoluta de la Naturaleza, hoy en día prerrogativa del cine ruso en general
[2].
Para la gran parte de los europeos, de hecho, habituados a otras dimensiones espaciales y demográficas, será difícil imaginar lo que son esas enormes extensiones de tierra: campos y planicies interminables, longas cordilleras repletas de densa vegetación, amplias zonas desiertas y insalubres. Seguramente en ese aspecto la cultura rusa puede desarrollar una noción particular de la relación entre lo humano y la Naturaleza no el Cosmos: delante de esos escenarios naturales vastos y imperturbables, la pequeñez del individuo, e incluso la volatilidad de la propia comunidad humana, aparecen como algo pasajero y irrisorio, inerme presencia antropológica a que esa misma Naturaleza, serena la mayor parte das veces, violenta cuando así ocurre, resta en la total das indiferencias.
Quizás la más grande evidencia de esa visión en el cine de Sokurov es el final del «Día del Eclipse» (
Dni zatmeniya, de 1988)[3]: un plano fijo que se sostiene por varios minutos, con aquel amarillo tórrido y un poco enfermizo que domina toda la obra. En medio del paisaje árido y desertificado, basto de rocas y piedras arenosas, se esconde aquella mediana y mediocre ciudad donde al final nada de especial ocurre no acaece, como un reflejo de que la vida humana no tiene realmente tanta importancia relativamente al mundo como tal. Esa población, lentamente, y bajo el mismo plano fijo, se torna cada vez más difusa, desenfocada, hasta el momento en que finalmente desaparece por completo, al paso que ningún elemento natural, ni siquiera el cielo vagamente nublado, haya presentado alguna señal del más leve cambio. Ese fue el verdadero eclipse, el desaparecimiento, por defecto, por inútil, de la presencia del Hombre: su acción es innocua e insignificante. Sólo la Naturaleza se mantiene, sólo ella perdura[4].
En estas primeras obras de Sokurov otra constante es la figura de un médico como uno de los personajes principales. El médico representa hoy un cierto espíritu de victoria de la humanidad sobre el reino microbiológico. La forma como la medicina avanzó en los últimos doscientos años está coronada de éxito. Inumerables enfermedades fueron controladas, siendo impacto de eso el aumento de la esperanza de vida, sobretodo la reducción de la mortandad infantil. Los médicos de Sokurov, sin embargo, son muy diferentes. No tienen hospitales ni laboratorios, prácticamente ya abdicaron de sus instrumentos, se limitan a vaguear solitarios por un mundo donde no encuentran lugar, cargando el fardo de la su propia existencia carente de un sentido que sea claro. Es más: no consiguen salvar nunca a nadie, ni a sus propios familiares. Los personajes a quien asisten acabarán muriéndose, ante la impotencia de la mirada clínica que solamente puede anticipar esa misma muerte, como si lo único que pudiera verificar fuera su pungente inevitabilidad. La finitud de lo humano queda expuesta, incluso – no sobremanera – a través del fracaso concluyente de este dominio en que la evolución técnica es tan brillante y certera. Estamos en el plano del trágico: el ser humano no puede desafiar a la muerte, ni la fuerza implacable de la Naturaleza y de su congénito aliado - el Tiempo.
Sokurov atribuye, en efecto, notable importancia al tiempo. Entendido en múltiplas acepciones, esta categoría juega en su cinema y en su terminología un papel clave y crucial. El tiempo respecta primero a la duración de la película, que es la obra, y en ese aspecto es susceptible de alguna manipulación, o al menos tentativa, que es al mismo tiempo un repto en abierto. El realizador ruso es consciente de haber sido con «El Arca Rusa» (Ruski Kovcheg, 2002) que llevó ese esfuerzo más lejos hasta el momento. El riesgo asumido de grabar una largo-metraje de hora y media, en un único plano, sin cualquier corte o montaje, podría incluso no parecer tan vertiginoso si fuera un film intimista, con pocos recursos escénicos y humanos, como es el caso de «Madre y Hijo». Mas «El Arca Rusa» implicó más de 2000 actores y figurantes. Ha sido ensayada meticulosamente durante seis meses y finalmente rodada en el día 23 de diciembre de 2001, recorriendo 33 salas y galerías del Museo Hermitage, sirviéndole de auténtico billete postal, o de visita guiada, al mismo tiempo cargado de una potente atmósfera onírica y de un aparato performático impresionante. Recordemos la faustosa escena del baile, por ejemplo, en la cual toca efectivamente en directo la Orquesta del Teatro Kirov, también de San Petersburgo, dirigida por el gran maestro Valeri Gergiev, o, ya hacia el final, la de la majestosa Escalera, espectacular, donde vamos escuchando voyeurísticamente las conversaciones de varios aristócratas urbanos y de provincia, mientras la cámara baja siguiendo una harmoniosa cadencia hasta la salida del edificio.
En El Arca Rusa, de hecho, la cámara avanza prácticamente siempre al mismo ritmo, ofreciendo a quien la ve ese sereno compaso de un tiempo substancial, ontológico, que transcurre de forma absolutamente esencial a cada segundo, siempre presente. El espectador lúcido no puede evitar la inquietud de pensar lo que podría pasar si alguna cosa hubiera andado mal - pues tendría que empezarse a filmar de nuevo desde el inicio. El tiempo es el protagonista total del film, incluso porque lo que podemos chamar ‘acción’ (en este contexto gana un significado bastante peculiar) transcurre varios siglos, haciendo desfilar los czares, los conspiradores políticos, los grandes escritores y músicos, en avanzadas y vueltas atrás que empero escapan al entendimiento de quien sea menos avisado sobre las incidencias de la historia rusa.
Pensará el lector que por la relevancia de los motivos del tiempo y de la Naturaleza o Cosmos en la estética sukoroviana, se presentan por deslindar posibles articulaciones entre su cinema y el pensamiento de un Martin Heidegger, por ejemplo. Afloramos esta perspectiva en función del apelo de la Naturaleza, o de la tierra, tan manifiesto en la segunda fase del pensador de la Selva Negra, y también de su apreciación del tiempo en cuanto vector estructurante y soportador de la realidad ontológica, desde el proyecto abandonado de Sein und Zeit.
Otros planos, aún así, podrían legitimar o fecundar esta aproximación. Uno de ellos, salientemente, es la dedicación respecto a la literatura, entendida como el arte primigenio y axial, fuente de la cual necesariamente manan todas las otras artes y incluso las formas culturales. Pese a que todo apunte para una divergencia no del todo insignificante: Heidegger se refiere claramente a la poesía, al poema como gesto fundador de la palabra y de la propia existencia, mientras que Sokurov prefiere sin lugar a dudas la integridad de la novela en prosa, en su calidad de documento sobre la espiritualidad y la psicología íntima, al mismo tiempo como naciente que aporta y penetra toda la civilización y, claro, toda el arte.
Por fin, otro punto de contacto seria el valor atribuido a la pertenencia a una comunidad, al proceso histórico, al arraigamiento en una tradición cultural artística, como algo en que estamos inscritos y que hace parte indeleble de nuestro patrimonio onto y filogenético. Sokurov también nos relata abundantemente esa necesaria inmersión identitaria, tal cual el deber ético, político, social y pedagógico que el arte ha de poseer respecto a la cultura de cada país y de cada pueblo, una función que no deja, hoy en día, de ser patentemente resistencia contra la globalización expropiadora – y, diría Heidegger, desenraizadora -, tal cual contra la decadencia propagada por los medios de comunicación social y favorecida o sancionada por la clase política moralmente inepta. El arte, el grande arte, que existe desde siempre en sus más robustos fundamentos, no prescinde, no obstante, de la libertad del criador, de su marca autoral y singular. El artista se sitúa por tanto precisamente en esa encrucijada compleja entre la indispensable formación técnica de los medios y en el dominio de las herramientas artísticas, el talento y la creatividad, el conocimiento profundo de las letras, de la historia y de la estética, pero a la vez el compromiso hacia los valores que el director ruso apellida de humanísticos, a la función moralmente edificante y enriquecedora que subyace al propio arte.
El cineasta ruso se defiende bien bajo este ángulo. La idea de que los ideales del arte deben ser hondos y estar a la altura de esa responsabilidad de erigir valores fecundos para la espiritualidad humana es realmente antigua. La encontramos, categóricamente, en el Tratado sobre lo Sublime, redactado en el siglo I d.C., atribuido a Dionisio Longino (Pseudolongino), y donde se puede leer que «lo Sublime es el eco de un espíritu noble»
[5]. Recurre como una vena todo este escrito la noción que lo sublime, forma más excelsa del arte, no es posible lograrse solamente a través de expedientes técnicos o destrezas de estilo. Aún que estos sean fundamentales, lo son todavía más la riqueza espiritual y una estatura moral caracterizada por pensamientos elevados y sentimientos incólumes. Porque, también allí hallamos, es trasfondo decisivo de la arte su función moral y pedagógica, socialmente edificante, pero al mismo tiempo su valía no se puede realizar ni cumplir sin el talento creativo del autor, la entrega vívida de su heurística y incluso de su personalidad empeñada.
Siguiendo este orden de ideas, Sokurov cuñó, y parece ser aviso unánime, hasta ahora, su obra prima con «Madre y Hijo» (Mat i Syn, 1997). Visualmente admirable, es una película que no llega a tener hora y media de duración, con un ritmo sereno y apaciguador, que convoca la complicidad interior del espectador. La Naturaleza vuelve aparecer espléndida, en su calma inquebrantable, en su superior permanencia, en los umbrales de lo sublime y de lo trascendente.
La acción ocurre en un lugar aislado, repleto de esa fuerza ubicua de la Naturaleza intacta, donde hay tan sólo una pequeña casa y algunos caminos de tierra batida como precarias presencias hominales. Los dos protagonistas son una madre enferma, moribunda, y su hijo que se encarga de cuidarla con todo el celo y dedicación. En una inversión de papeles, aquí es el hijo que transporta en brazos a su madre, retribución de un amor, y del origen de la vida, que la progenitora le concedió antes. Este viaje al epicentro de la filiación, de la relación más estrecha y elementar que puede ligar dos personas, remite manifiestamente a la exaltación de los afectos como una de las supremas riquezas del ser humano, leitmotiv capital de la estética sukoroviana.
Una alternativa lectura política, que sin embargo el director niega haber presidido a la hechura del film, también gravita sobre esta obra impar. Similarmente a lo que pasó con el «Día del Eclipse», entendida por sus compatriotas como una alegoría sobre las dificultades de la resistencia subjetiva al autoritarismo castrador, más que propiamente como un retablo existencial, igualmente hay quien interprete, en «Madre y Hijo», y a pesar de no contener una única línea de diálogo ideológica, una cristalina metáfora política sobre la situación actual de la Rusia: la tierra-madre, como orgullosamente le llaman hijos, pasa por un grave período de crisis, su identidad cuestionada, parece morirse. Sus descendientes, o sea, las nuevas generaciones, se enfrentan a la obligación de cariñarla, de llevarla en brazos, de continuar la gesta del país, el mayor del mundo en extensión, lo cual no pode ser irrelevante.
Técnicamente, la imagen aparece casi siempre alargada, dando paso a noveles maneras de ver el mundo, a la apertura de nuevos territorios en el horizonte de quien ve. Y de quien escucha: la música, tratada de forma fractal y reelaborada, casi indetectable, entreteje un ambiente sonoro absolutamente único que también contribuye para la obra de arte total, para el cinema en su estado de pureza y perfección.
Lo dejamos por aquí, reportándonos a lo que el propio Sokurov alerta: para el peso excesivo que pueden tener las grandes armaduras conceptuales, sus significados demasiado rebuscados y pesados: «La realidad no es siquiera la palabra del autor, más bien su obra, lo que está haciendo». Admirémosla, por lo tanto.

Alexandre Nunes de Oliveira
(Diário do Sul/Universitat Autònoma de Barcelona)

· Para información detallada sobre la filmografía de Alexander Sokurov, se recomienda:
http://sokurov.spb.ru/island_en/flm.html
http://www.imdb.con/name/nm0812546/




[1] - Partisano y poeta de la Revolución Bolchevique, años más tarde perseguido y arrinconado por Estaline. Ha vivido entre 1889 y 1951.
[2] - Como podemos comprobar a través de muchas de las obras recientes de realizadores como Lydia Bobrova, Andrey Zvyagintsev, Bakhtier Khudoinazarov, Alexei German Jr., Ilya Khrzhanovsky, Boris Khlebnikov, no Alexei Popogrebsky, en fin, toda una neófita y promisoria generación de cineastas rusos, que destacan por su sensibilidad humana e la apurada calidad visual. Lamentablemente, es un cinema poco exhibido comercialmente, y por lo tanto votado a un injustísimo desconocimiento.
[3] - Está basado en un libro de ficción científica escrito por los hermanos Boris y Arcady Strugatsky (que influenciaron también a Tarkovski, en especial Stalker y Solaris), Un Billón de Años Antes del Final del Mundo. Con este largo-metraje Alexander Sokurov debutó en el Festival de Berlín (1989), donde consiguió una mención de honor. La banda sonora original y la sonoplastía, respectivamente a cargo de Yuri Khanin y Vladimir Persov, han recibido premios en varios certámenes.
[4] - Rodado en los años de la Perestroika, este film obtuvo entonces mucho éxito junto del público ruso, habiendo acogido una recepción bastante más politizada, según la cual el protagonista sería un resistente víctima del totalitarismo político e la desaparición final da ciudad de provincia representaría el final de la opresión soviética. Esta dicotomía entre un simbolismo existencial trágico, por un lado, e la metáfora político-ideológica, por otra parte, resulta frecuente en la recepción crítica a las obras de Sokurov.
[5] - ‘LONGINO’, Tratado sobre no Sublime, IX, 2.

ALEXANDER SOKUROV - um cinema luminoso

ALEXANDER SOKUROV - um cinema luminoso


Alexander Sokurov nasceu no dia 14 de Junho de 1951, em Podorvikha, um lugar da remota Sibéria, como gosta de frisar. A sua paixão fundamental foi desde cedo a literatura, e quando se mudou para Moscovo, para licenciar-se em História, queria entrar para a rádio. Felizmente para nós, que seguimos com deslumbramento a sua obra, o cinema tornou-se o caminho que trilhou.

De forma singular, legou-nos até agora filmes intensos, plasticamente soberbos – a fotografia, que atinge cromatismos improváveis, é trabalhada de forma inovadora e radical, com ajuda de filtros e distorções, até provocar efeitos capazes de nos fazer ver o mundo de outra maneira; a música, com fragmentos, colagens e remisturas de sinfonias irreconhecíveis. É um cinema de pequenos detalhes e grandes obras. Luminoso, pleno, perfeito.
A sua primeira longa-metragem, «A Voz Solitária do Homem» (
Odinokiy golos cheloveka), data de 1978, e correspondeu ao trabalho de fim de curso que mereceu a incompreensão dos responsáveis da escola moscovita, de tal forma que a sua exibição foi proibida e a película esteve inclusivamente para ser queimada. Quem já a viu, como nós talvez possa opinar que tal perda teria sido criminosa para a história do cinema, uma vez que para além de ser uma belíssima estreia, contém já muitas das linhas condutoras da estética e do imaginário deste autor, na altura claramente devedor do mestre Andrei Tarkovsky, a quem de resto Sokurov não escondeu uma dedicatória. O apoio moral do autor de «Solaris» e «Andrei Rubliov» terá sido, na verdade, decisivo para que o na altura seu discípulo não soçobrasse ante os óbices e o repúdio institucional. Mas a reviravolta política levada a cabo com a Perestroika permitiu ao jovem realizador siberiano recuperar a obra, levando-a remasterizada ao emergente Festival de Locarno, na Suíça, onde ganharia o Grande Prémio do Júri na edição de 1987.
Vendo «A Voz Solitária do Homem», que está baseado em textos do escritor Andrei Platonov
[1], damo-nos conta que se trata de um título programático. A humanidade tem voz, produz discursos e textos, mas essa voz é solitária, ou se quisermos silenciosa, porque diz afinal muito pouco, na medida em que o seu eco é curto, o seu alcance limitado, as suas repercussões diminutas no tempo e no espaço. A palavra, tal como a acção antropóide em geral, são efémeras, localizadas, inconsequentes, em especial perante aquela Natureza imensa que permanece estática e alheia - mas que sobretudo permanece - enquanto que o indivíduo humano vive absorto pela passividade, ou fustigado pela inquietude que se traduz na busca continuada de algo que nunca se encontra ou logra (há personagens que falam reconhecendo que já estão mortos, tal é a inutilidade da palavra – e da acção), enfim, vive lapidado e delapidado pela angústia, pelo desespero, pela frustração, pela ausência de um sentido real que modele e impulsione a existência.
Assim começou o percurso daquele que é um dos realizadores mais apreciados da actualidade, pela radicalidade, originalidade e persistência do seu trabalho. De Tarkovski, assumida e principal influência originária, Sokurov recolheu o interesse, a fixação, por temas metafísicos que afligem o humano no seu destino essencial, tal como uma certa psicologia, profunda, inóspita, transmitida através de silêncios, de olhares longos ou bruscos, de gestos, de palavras intangíveis e enigmáticas. E claro, essa presença absoluta da Natureza, hoje em dia uma prerrogativa do cinema russo em geral
[2].
Para a maior parte dos europeus, de facto, habituados a outras dimensões espaciais e demográficas, será difícil imaginar o que são essas imensas extensões de terra: campos e planícies intermináveis, longas cordilheiras repletas de densa vegetação, amplas zonas desertas e insalubres. Seguramente nesse aspecto a cultura russa pode desenvolver uma noção particular da relação entre o humano e a natureza ou o cosmos: perante esses cenários naturais vastos e imperturbáveis, a pequenez do indivíduo, e mesmo a volatilidade da própria comunidade humana, aparecem como algo de passageiro e irrisório, inerme presença antropológica à qual essa mesma natureza, serena a maior parte das vezes, violenta quando se apraz, resta na total das indiferenças.
Por ventura a maior evidência dessa visão no cinema de Sokurov é o final do «Dia do Eclipse» (
Dni zatmeniya, de 1988)[3]: um plano fixo que se sustém por vários minutos, com aquele amarelo tórrido e um pouco doentio que domina toda a obra. No meio da paisagem árida e desertificada, basta de rochas e pedras arenosas, esconde-se aquela mediana e medíocre cidade onde afinal nada de especial acontece, como um reflexo de que a vida humana não tem realmente tanta importância relativamente ao mundo como tal. Essa povoação, lentamente, e sob o mesmo plano fixo, vai tornando-se cada vez mais difuminada, desfocada, até que finalmente desaparece por completo, ao passo que nenhum elemento natural, nem sequer o céu vagamente nublado, apresentaram sinal de mudança alguma. Esse foi o verdadeiro eclipse, o desaparecimento, por defeito, por inútil, da presença do homem: a sua acção é inócua e insignificante. Só a natureza se mantém, só ela perdura[4].
Nestas primeiras obras de Sokurov outra constante é a figura de um médico como um dos personagens principais. O médico representa hoje um certo espírito de vitória da humanidade sobre o reino microbiológico. A forma como a medicina avançou nos últimos duzentos anos está coroada de êxito. Inúmeras doenças foram controladas, sendo impacto disso o aumento da esperança de vida, sobretudo a redução da mortalidade infantil. Os médicos de Sokurov, no entanto, são muito diferentes. Não têm hospitais, praticamente já abdicaram dos seus instrumentos, limitam-se a vaguear solitários por um mundo onde não encontram lugar, carregando o fardo da sua própria existência carente de um sentido que seja claro. Mais: não conseguem salvar nunca ninguém, nem os seus próprios familiares. Os personagens a quem assistem acabarão por morrer, ante a impotência do olhar clínico que unicamente pode antecipar essa mesma morte, que apenas pode verificar in loco a sua pungente inevitabilidade. A finitude do humano fica exposta, mesmo – ou sobretudo - através do fracasso concludente deste domínio em que a evolução técnica é tão brilhante e certeira. Estamos no plano do trágico: o ser humano não pode desafiar a morte, nem ir contra a força implacável da natureza e do seu congénito aliado - o Tempo.
Sokurov atribui, com efeito, notável importância ao tempo. Entendido em múltiplas acepções, esta categoria joga no seu cinema e na sua terminologia um papel chave e crucial. O tempo respeita primeiro à duração do filme, que é a obra, e nesse aspecto é susceptível de alguma manipulação, ou pelo menos tentativa, que é ao mesmo tempo um desafio em aberto. O realizador russo é consciente de ter sido com «A Arca Russa» (Russki Kovcheg, 2002) que levou esse esforço mais longe até agora. O risco assumido de gravar uma longa-metragem de hora e meia, num único take, sem qualquer corte nem montagem, podia não parecer tão vertiginoso se fosse um filme intimista, com poucos recursos cénicos e humanos, como é o caso de «Mãe e Filho». Mas «A Arca Russa» envolveu mais de 2000 actores e figurantes. Foi ensaiada cuidadosamente durante seis meses e finalmente rodada no dia 23 de Dezembro de 2001, percorrendo 33 salas e galerias do Museu Hermitage, servindo-lhe de verdadeiro bilhete postal, ou visita guiada, ao mesmo tempo carregado de uma eivada atmosfera onírica e de um aparato performativo impressionante. Recorde-se a faustosa cena do baile, por exemplo, na qual toca efectivamente ao vivo a Orquestra do Teatro Kirov, também de São Petersburgo, dirigida pelo soberbo maestro Valeri Gergiev, ou, já no final, a da Escadaria, espectacular, onde vamos escutando voyeuristicamente as conversas de vários aristocratas urbanos e de província, enquanto a câmara desce a uma harmoniosa cadência até à saída do edifício.
N’A Arca Russa, de facto, a câmara avança praticamente sempre ao mesmo ritmo, oferecendo a quem vê esse sereno compasso de um tempo substancial, ontológico, que transcorre de forma absolutamente essencial a cada segundo, sempre presente. O espectador lúcido não pode evitar o frisson de pensar que poderia passar se alguma coisa correra mal - pois teria que começar-se a filmar novamente desde o início. O tempo é o protagonista total do filme, até porque o que podemos chamar ‘acção’ (neste contexto ganha um significado bastante peculiar) transcorre vários séculos, fazendo desfilar os czares, os conspiradores políticos, os grandes escritores e músicos, em avanços e recuos que porém escapam ao entendimento de quem seja menos avisado sobre pormenores da história russa.
Pensará o leitor que pela relevância dos motivos do tempo e da natureza ou cosmos no cinema sukoroviano, apresentam-se por deslindar possíveis articulações entre o seu cinema e o pensamento de um Martin Heidegger, por exemplo. Afloramos esta perspectiva em função do apelo da natureza, ou da terra, tão manifesto na segunda fase do pensador da Floresta Negra, e também da sua apreciação do tempo enquanto vector estruturante e suportador da realidade ontológica, desde o projecto abandonado de Sein und Zeit.
Outros planos, ainda assim, poderiam legitimar ou fecundar esta aproximação. Um deles, salientemente, a dedicação pela literatura, entendida como a arte primeva e axial, fonte da qual necessariamente emanam todas as outras artes e inclusive as formas culturais. Ainda que tudo aponta para a existência de uma divergência não de todo insignificante: Heidegger refere-se claramente à poesia, ao poema como gesto fundador da palavra e da própria existência, ao passo que Sokurov prefere sem lugar a dúvidas a completude do romance em prosa, na sua qualidade de documento sobre a espiritualidade e a psicologia íntima, ao mesmo tempo como nascente que aporta e penetra toda a civilização e, claro, toda a arte.
Por fim, outro ponto de contacto seria o valor atribuído à pertença a uma comunidade, ao processo histórico, ao enraizamento numa tradição cultural artística, como algo em que estamos inscritos e que faz parte indelével do nosso património onto e filogenético. Sokurov também nos fala abundantemente dessa necessária imersão identitária, tal como do dever ético, político, social e pedagógico que a arte deve ter respeito à cultura de cada país e de cada povo, uma função que não deixa, hoje em dia, de ser patentemente resistência contra a globalização expropriadora – e, diria Heidegger, desarraigadora -, tal qual contra a decadência propagada pelos meios de comunicação social e favorecida ou sancionada pela classe política moralmente inepta. A arte, a grande arte, que existe desde sempre nos seus mais robustos fundamentos, não prescinde no entanto da liberdade do criador, da sua marca autoral e singular. O artista situa-se portanto precisamente nessa encruzilhada complexa entre a indispensável formação técnica nos meios e no domínio das ferramentas artísticas, o talento e a criatividade, o conhecimento profundo das letras, da história e da estética, mas também o compromisso relativamente aos valores que o director russo apelida de humanísticos, à função moralmente edificante e enriquecedora que subjaz à própria arte.
O cineasta russo defende-se bem neste aspecto. A ideia de que os ideais da arte devem ser profundos e estar à altura dessa responsabilidade de erigir valores fecundos para a espiritualidade humana é de facto antiga. Encontramo-la, categoricamente, no Tratado sobre o Sublime, escrito no Século I d.C., atribuído a Dionisio Longino, e onde se lê que «o Sublime é o eco de um espírito nobre»
[5]. Percorre como um veio todo este escrito a noção que o sublime, forma mais excelsa da arte, não é possível alcançar-se somente através de expedientes técnicos ou destrezas de estilo. Ainda que estes sejam fundamentais, são-no mais ainda a riqueza espiritual e uma estatura moral caracterizada por pensamentos elevados e sentimentos incólumes. Porque, também ali achamos, é esteiro decisivo da arte a sua função moral e pedagógica, socialmente edificante, mas ao mesmo tempo a sua valia não se pode realizar nem cumprir sem o talento criativo do autor, sem a entrega vívida da sua heurística e mesmo da sua personalidade empenhada.
Seguindo esta ordem de ideias, Sokurov cunhou, no que parece ser aviso unânime, até agora, a sua obra maior em «Mãe e Filho» (Mat i Syn, 1997). Visualmente admirável, é uma película que não chega à hora e meia de duração, com um ritmo sereno e apaziguador, que convoca a cumplicidade interior do espectador. A natureza volta a aparecer esplêndida, na sua calma inquebrantável, na sua superior permanência, à beira do sublime e do transcendente.
A acção transcorre num lugar isolado, repleto dessa força ubíqua da natureza intacta, onde há apenas uma pequena casa e alguns caminhos de terra batida como precárias presenças hominais. Os dois protagonistas são uma mãe doente, moribunda, e o seu filho que se encarrega de cuidá-la com todo o zelo e dedicação. Numa inversão de papéis, aqui é o filho que transporta em braços a mãe, retribuição de um amor, e da origem da vida, que a progenitora lhe deu antes. Esta viagem ao epicentro da filiação, da relação mais elementar que pode ligar duas pessoas, remete manifestamente à exaltação dos afectos como uma das maiores riquezas do ser humano, leitmotiv capital da estética sukoroviana.
Uma alternativa leitura política, que no entanto o director recusa ter presidido à feitura do filme, também paira sobre esta obra ímpar. À semelhança do que ocorreu com «Dia do Eclipse», entendida pelos seus compatriotas como uma alegoria sobre as dificuldades da resistência subjectiva ao autoritarismo castrador, mais que propriamente um retábulo existencial, há igualmente quem lhe entreveja, em «Mãe e Filho», e apesar de não conter uma única linha de diálogo ideológica, uma cristalina metáfora política sobre a situação actual da Rússia: a terra-mãe, como orgulhosamente lhe chamam os seus filhos, passa por um grave período de crise, a sua identidade posta em causa, definha. Os descendentes, ou seja, as novas gerações, enfrentam-se à obrigação de a acarinhar, de a levar em braços, de continuar a gesta do país, o maior do mundo em extensão, o que não pode ser de somenos.
Tecnicamente, a imagem aparece quase sempre alongada, abrindo passo a novéis maneiras de ver o mundo, à abertura de novos umbrais no horizonte de chegada de quem vê. E de quem ouve: a música, tratada de forma fractal e reelaborada, quase indetectável, entretece um ambiente sonoro absolutamente único que também contribui para a obra de arte total, para o cinema na sua pureza e perfeição.
Deixamo-nos por aqui, reportando-nos ao que o próprio Sokurov alerta: para o peso excessivo que podem vir a ter as armações conceptuais, os seus significados demasiado rebuscados e pesados: «A realidade não é sequer a palavra do autor, mas a sua obra, o que está fazendo», confidencia-nos.

Alexandre Nunes de Oliveira
(Diário do Sul/Universitat Autònoma de Barcelona)

· Para informação detalhada sobre a filmografia de Alexander Sokurov, recomenda-se:
http://sokurov.spb.ru/island_en/flm.html
http://www.imdb.com/name/nm0812546/




[1] - guerrilheiro e poeta da Revolução Bolchevique, anos mais tarde perseguido e ostracizado por Estaline. Viveu entre 1889 e 1951.
[2] - Como podemos comprovar através de muitas das obras recentes de realizadores como Lydia Bobrova, Andrey Zvyagintsev, Bakhtier Khudoinazarov, Alexei German Jr., Ilya Khrzhanovsky, Boris Khlebnikov, ou Alexei Popogrebsky, enfim, toda uma neófita e promissora geração de cineastas russos, que se destacam pela sua sensibilidade humana e a acurada qualidade visual. Lamentavelmente, é um cinema pouco exibido comercialmente, assim votado a um lamentável e injustíssimo desconhecimento.
[3] - Está baseado num livro de ficção científica escrito pelos irmãos Boris e Arcady Strugatsky (que influenciaram a obra de Tarkovski, em especial Stalker e Solaris) cujo título da tradução inglesa é Billion Years Before the End of the World, ou A Milliard Years before the End of the World, segundo outra versão. Com esta longa-metragem Alexander Sokurov debutou no Festival de Berlim (1989), onde conseguiu uma menção honrosa. A banda sonora original e a sonoplastia, respectivamente a cargo de Yuri Khanin e Vladimir Persov, receberam prémios em vários certames.
[4] - Filmado nos anos em que a Perestroika foi levada a cabo, este filme obteve então muito sucesso junto do público russo, tendo sido acolhido com uma recepção bastante mais politizada, em que o protagonista seria um resistente vítima do totalitarismo político e o desaparecimento final da cidade de província representaria o final da opressão soviética. Esta dicotomia entre um simbolismo existencial trágico, por um lado, e a metáfora político-ideológica, por outro, é recorrente na recepção crítica às obras de Sokurov.
[5] - ‘LONGINO’, Tratado sobre o Sublime, IX, 2.

Theo Angelopoulos em Barcelona


Theo Angelopoulos em Barcelona

- O cinema como acto de amor

Na tarde de 27 de Abril, Theo Angelopoulos, que completava 71 anos nesse mesmo dia, foi aplaudido por um público atento que o viu e escutou na Sala Mirador do Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona, janelas à cidade e ao Mediterrâneo.
O veterano realizador grego revelou uma personalidade encantadora, capaz de momentos de grande eloquência e riqueza poética, deixando-nos impressão da sua imensa cultura cinematográfica, através de referências claras e tão bem moldadas quanto medidas.
A ocasião revestiu o carácter de mesa redonda, perante estudantes, estudiosos, jornalistas e críticos. Aqui fica uma resenha das suas principais ideias, postas em andamento por intermédio das nossas perguntas e das de outros que ali também acorreram.



Pergunta: De onde nascem os seus filmes?

Theos Angelopoulos: Surgem a partir de ideias. Mas as ideias são como borboletas, não se sabe bem donde vêm. Parece-me que nós não as escolhemos, mas que somos escolhidos por elas. Portanto cada caso é um caso. As ideias podem nascer da observação, de momentos especiais e únicos, como um ninho de cegonhas na fronteira turco-greca. Daí me adveio a ideia de filmar «O Passo Suspenso da Cegonha». Portanto, é preciso estar atento, como alguém quando espera o amor...

Pergunta: Mas apesar da especificidade de cada filme, há uma identidade na sua estética, uma continuidade, uma marca de autor: a montagem não é fundamental, mas sim a mise-en-scéne. Podemos dizer que é um cineasta de grandes planos-sequência prolongados, coreográficos até, nalguma medida...

T. Angelopoulos: Costumo dizer que no meu cinema há guarda-chuvas. Mesmo quando não chove. Os guarda-chuvas são sempre pretos. E há homens com impermeáveis amarelos. Falo da busca de um imaginário ou de uma linguagem que se expressa através de uma paleta de tonalidades cromáticas. Relativamente ao que se disse sobre a montagem, estou de acordo. Não gosto do cinema baseado na montagem – é um cinema de atracção, ou então ideológico, como é o caso de Eisenstein. Ainda que no final da sua vida Eisenstein se tenha vindo a aproximar do grande plano-sequência, como se vê através de «Ivan, o Terrível».
Depois, tematicamente, também tenho os meus caminhos, naturalmente. Sou um filho da guerra. Vivi a guerra civil, que foi muito traumática na Grécia. É uma coisa que não se esquece. A guerra marca profundamente uma pessoa. E interrogo-me muito sobre isso, como se chega a uma determinada situação política: Uma ditadura não cai do céu. Há razões para isso. Por isso, o Tempo, em especial o passado e o presente, são muito importantes no meu cinema. Isto é ideológico, mas também estético. Cheguei um dia a esse momento, aconteceu-me. Sou talvez o primeiro cineasta a ter aplicado este método – da indiferenciação narrativa e sequencial entre o passado e o presente no tempo do filme. Os retrocessos temporais não se tratam de flashbacks individuais, como talvez erradamente se possa pensar, mas de uma memória colectiva.
Vamos a outros aspectos. Falou-se da componente coreográfica. De facto, penso que não há nada tão atraente ou sugestivo como uma mulher dançando. Na música, como na dança, há pausas. Há movimento, e depois há pausas. Esta sucessão de movimento e intervalo tornou-se um imperativo para mim porque isso faz também parte da vida quotidiana, também ela está repleta de pausas. E isso faz parte do movimento, é inseparável dele. Desde o meu primeiro filme que existe essa dinâmica. Portanto, há uma maior importância dos elementos plásticos e musicais que dos narrativos. O tempo, como a paisagem, devem ser vistos como interiores e exteriores.
No entanto, para mim, não há só uma maneira de trabalhar. Como acontecia com Hitchcock, por exemplo, que calculava tudo criteriosamente. Para ele a filmagem era tão somente a aplicação de um guião pré-estabelecido até aos mais ínfimos detalhes. René Clair também filmava assim. Para mim, contudo, o guião é uma matéria-prima maleável, que se pode ir modificando. Assim, posso dizer que crio no momento da filmagem. É isso que encontro extraordinário no cinema, a filmagem, não tanto o guião ou a montagem. A obra decide-se na filmagem.

«o importante do meu cinema é comunicar o que nunca foi dito»

Pergunta: E onde leva essa metodologia? A que desígnios preside?

T. Angelopoulos: Há muitos fenómenos no processo criativo que não sou capaz de explicar, mas o importante do meu cinema é comunicar o que nunca foi dito. Algo de novo, como a primeira vez que se faz amor. Na filmagem é isso que se tem que ter em conta.

Pergunta: A referência à mitologia clássica helénica também parece ser um elemento bastante decisivo dos seus filmes. É mais evidente no Olhar de Ulisses, mas também percorre outras obras. Identifica-se com essa dimensão ancestral da cultura do seu país?

T. Angelopoulos: Sim, mas muito particularmente, presto reverência à Odisseia de Homero. É um livro fundador, uma fonte inesgotável. Nele encontramos obstáculos e a superação dos obstáculos, o amor, a dimensão existencial da vida... é uma viagem de «mim mesmo» - de cada um de nós. Mas também desde o ponto de vista estilístico, Homero tem tudo: desde monólogos a grandes cenas de conjunto. Tem finais felizes, que são o embrião de Hollywood, por exemplo. Por isso podemos dizer que Hollywood já estava contido em Homero (risos). Enfim, todos os recursos estilísticos estão lá. A descrição do escudo de Aquiles, na Ilíada, por exemplo, que ocupa várias páginas, podemos dizer que é a origem do plano-sequência. Assim que podemos afirmar que o meu cinema também deriva directamente de Homero.

Pergunta: Ou seja, o seu cinema está indissociavelmente imbuído ou ligado à grande tradição clássica grega, bebe continuamente dessa fonte. A sua formação clássica foi pois muito importante?

T. Angelopoulos: Sim, mas não vos vou enganar. Precisei de sair da Grécia para que assim fosse. No meu país, na escola, Homero estuda-se de forma mecânica, contabilizando as rimas e os versos, é uma péssima forma de abordagem. Naquela altura, por isso, parecia-me totalmente desinteressante. Foi mais tarde em Paris que redescobri de forma séria a Odisseia e todo o Homero. Foi em Paris que a Odisseia se tornou o livro mais importante da minha vida, pois fala da descoberta de si mesmo e do mundo, que era precisamente o momento que eu estava a viver.

«Deixei de ser um militante e passei a ser um melancólico.»

Pergunta: Paris representa então um momento de crescimento e de aprendizagem?

T. Angelopoulos: Sem dúvida. Paris foi a todos os títulos uma experiência fascinante. Quando acabei o serviço militar, tentei estudar Direito, mas não era bom aluno. E entretanto, apaixonei-me pelo cinema. Mas na Grécia era difícil estudar. Por isso decidi ir estudar cinema para Paris. Fui de mãos vazias. Fui conhecendo pessoas, foi tudo muito casual. Através do Cônsul grego, que era um amante da literatura, consegui um trabalho numa loja de tapetes. E comecei a frequentar a Cinemateca, que foi a melhor escola de cinema que tive. Foi efectivamente um período maravilhoso da minha vida. Um período de liberdade, de esperança e entusiasmo, de joie de vivre. Os melhores anos da minha vida.

Pergunta: E portanto o seu cinema, a sua idiossincrasia, é fruto dessa experiência?

T. Angelopoulos: Quando cheguei a Paris, nos anos 60, era uma época muito produtiva para o cinema, um período muito político, em que tudo era político. Fazer um filme era um acto político. Jorge Luis Borges quando lhe perguntaram: «para que escreve?», respondeu: «escrevo para mim mesmo, e para os que me são queridos». Isto na época dos anos 60 ninguém o dizia. Ninguém dizia «faço filmes para mim». Era um período demasiado político.
A maioria dos cineastas desse período passaram por Brecht. Mas há que ver que as peças de Brecht em si mesmas são mais dramáticas que as suas representações em cena, claramente mais politizadas. Há uma dramaturgia muito forte e elaborada em Brecht que às vezes se tende a obviar. Seja como for, eu passei de Brecht a Aristóteles, e à sua definição de Tragédia. [Angelopoulos cita em grego e traduz ele próprio, ao francês]: «a tragédia é a imitação de algo importante e perfeito, e tem por objectivo a catarse». Voltei assim a encontrar durante a minha estada em Paris uma referência que vinha do meu passado nacional e a que na Grécia não conhecera de forma relevante. Brecht ficou desta forma para trás, mas preencheu-me o pensamento, igualmente. Antes era ideologicamente de esquerda, depois tornei-me emocionalmente de esquerda. Deixei de ser um militante e passei a ser um melancólico da esquerda. A melancolia é a dignidade do sentimento.

«A actualidade passa na televisão. O cinema serve para debater temas mais intemporais.»

Pergunta: Para finalizarmos a conversa, comentemo-nos qual pensa ser a actualidade do seu cinema?

T. Angelopoulos: O termo actualidade tem um alcance restrito. Uma pessoa é actual para si mesma, possivelmente aquilo que pensa e comunica não é sentido como actual por outras pessoas, em particular pelas gerações mais novas. Por isso, não me preocupa tanto a questão. A actualidade passa na televisão. O cinema serve para debater temas mais intemporais. Enfim, no cinema fazemos o que podemos. Há sempre lugar para a melancolia, mas ela é justa. Porque a vida nem sempre é alegre. Há momentos difíceis. Como já lhe falei, há muitas pessoas da minha geração que ficaram traumatizadas com a guerra. Uma vez, no Japão, fui visitar Nagisa Oshima, que estava doente. O mais preponderante cineasta político japonês, embora claro, nem todo o seu cinema seja necessariamente político, fez filmes extraordinários, mas nota-se-lhe que sofreu muitíssimo o trauma da guerra. Agora, e é assim que vejo as coisas, fazer um filme é um grande momento de prazer e de reconciliação com a vida. Nesse sentido, tenho a dizer que o cinema não é a minha profissão: é a minha vida.

* compilado, seleccionado e redigido por Alexandre Nunes de Oliveira