11deJulho

tendências, souvenirs, beijos esparcidos aos precipícios dessa coisa rugosa que muitos chamam amor, solilóquios, colóquios, provocações e invectivas, enfim, de tudo um pouco, daquilo que sou

Monday, May 08, 2006

ENTREVISTA com ALEXANDER SOKUROV

* Uma vocação humanista

- ou também: A imagem como destino

Por Alexandre Nunes de Oliveira *

Barcelona em plena primavera, abrindo portas e salas à sétima arte do Velho Continente. Alexander Sokurov, o mais importante cineasta russo da actualidade, foi um dos homenageados do CICEC – I Congresso Internacional de Cinema Europeu Contemporâneo, organizado em conjunto pelo Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona (CCCB) e pela Universidade Pompeu Fabra (UPF), também da capital catalã.
Afável, calmo, até discreto, agradecia todas as atenções com um sorriso e respondia como lhe era possível às solicitações. Foi ouvindo com abnegada tranquilidade os elogios que lhe rasgaram os especialistas, atribuindo-lhe o estatuto de «superior estilista do cinema contemporâneo», «demiurgo de uma experiência filmíca totalmente inovadora, mesmo nos círculos mais alternativos», e «personalidade única e absolutamente singular, autor de um cinema contemplativo, filosófico, profético e de autênticas dimensões cósmicas».
Já antes de que se nos acercássemos, advertira do seu escasso conhecimento das principais línguas de uso internacional. Por isso, fez-se acompanhar constantemente de uma tradutora improvisada, uma compatriota que exerce como professora no departamento de filologia da UPF, e que foi cumprindo a missão com zelo até acusar uma certa exaustão.
O realizador desdobrou-se em conferências de imprensa, apresentações dos seus próprios filmes, encontros com estudantes. Uma agenda apertada que impossibilitou que todas as perguntas obtivessem respostas. Mas a conversa aqui fica transcrita, à guarda da Conceito.


PERGUNTA: Alexander Sokurov é hoje um dos realizadores mais respeitados no mundo, considerado um dos maiores estilistas do cinema contemporâneo, e largamente apreciado em círculos cinéfilos, académicos e intelectuais. Como se chega a ser o que se é?

SOKUROV: No cinema, sou um homem acidental. Quando acabei a escolaridade obrigatória não sonhava em absoluto com o cinema. Nem sequer o apreciava muito. E mesmo hoje não penso que seja a arte fundamental, essa é a Literatura. Na altura, porém, o queria era ser realizador de rádio, concretamente de rádio-novelas. Essa paixão vinha-me do facto de escutar assiduamente as adaptações para rádio das grandes obras literárias de escritores russos, por isso fascinava-me esse mundo.

P: Portanto há uma origem ligada à narratividade, à palavra, à literatura?

S: Para dedicar-se à cultura, em qualquer das suas facetas ou vertentes, deve-se possuir um nível cultural alto, um conhecimento grande e aprofundado dos valores humanísticos, em suma, o que se diz um bom «background». A minha família, de meios modestos, não me oferecia possibilidades culturais, por isso tive que dedicar-me primeiro a cultivar-me, a fim de dispor de uma legitimidade moral para dedicar-me à actividade artística. Mudei-me para Moscovo onde me licenciei em História e seguidamente entrei na Escola de Cinema.

«No cinema, sou um homem acidental, mas trabalhar no cinema tornou-se o meu destino.».»


P: Foi então que sentiu que poderia encaminhar através do cinema esse impulso criativo, esse apelo pela arte?

S: Sim, a partir de então trabalhar no cinema tornou-se o meu destino. Através do cinema posso formular perguntas e dar sentido a problemas que me inquietam e esboçar alguma resposta. Mas é tremendamente difícil. É necessário uma visão humilde, sensata, não ambições sem sentido. A arte, sempre a entendi com muita seriedade. A arte não é uma frivolidade, não é uma conversa de café. A cultura boémia, por exemplo, apresenta o seu interesse, mas não está necessariamente vinculada à arte. O artista pode ser boémio, mas o boémio não é forçosamente artista, e é fácil recair-se na mediocridade e na decadência. Portanto, tive que buscar cumprir ou preencher as condições essenciais para o exercício da arte: cultivar-me, expandir os meus conhecimentos, aprender. Entendo que se trata genuinamente de uma condição fundamental para quem se queira dedicar à arte.

P: Refere-se portanto a uma visão nobre, elevada, da Arte, capaz de transformar o ser humano, de transfigurá-lo e transcendê-lo, de levá-lo mais além dos seus horizontes quotidianos?

S: Sim, inclusivamente podíamos falar duma componente de espiritualidade. Antes, o ser humano cumpria esta função na sua vertente religiosa, mas a religião praticamente já perdeu essa função. Por isso, cada um tem que dedicar-se a alcançá-la por si mesmo, e cada um tem que ser apto para responder por si mesmo. A arte é o mais elaborado e avançado que temos nesse aspecto, é o elemento mais forte da espiritualidade humana.

«A arte é o elemento mais forte da espiritualidade humana.»


P: Antes falou também do valor da literatura, como a mais importante das artes...

S: Sim, mas deixe-me explicar essa minha devoção à literatura através da comparação com o cinema. O mais importante no cinema é o tempo. Mesmo para o espectador. As pessoas pensam que para ver um filme é preciso pagar com dinheiro. Isso é verdadeiramente irrelevante. Não se paga em dinheiro, mas em tempo. O tempo é irrepetível: uma hora e meia na vida de uma pessoa, ninguém nos devolverá esse tempo. Eu penso que é um preço elevado, muito elevado, e para aceder à arte, de forma geral. Ora, o cinema é uma das artes claramente menos desenvolvida, menos perfeita desde o ponto de vista formal...

P: Isso é um aspecto altamente discutível...

S: Este talvez seja, mas não me pode negar que o cinema apela unicamente à passividade do espectador!... Além do mais, 95% do cinema actual não tem qualidade, é banal, está dominado pela violência sem sentido, ou pela leviandade. Dos restantes 5%, 4% digamos, merecem alguma atenção. E só realmente 1% do cinema que se faz hoje em dia é o que temos que ir ver. Ainda assim, e era aqui que eu queria chegar, se compararmos este cinema supostamente imprescindível com a obra de Goethe, Cervantes ou Tolstoi, o cinema tem muito pouco para dar.

P: Custa-me crer que um dos realizadores mais conceituados da actualidade tenha uma visão tão restritiva sobre as virtualidades do cinema, uma arte tão do nosso tempo...

S: Entendo a sua decepção. Naturalmente é uma questão interessante e complexa, determinar se o cinema é arte, perguntar se existe o cinema como arte. Existe o cinema como forma cultural, isso está claro, porém como arte é discutível. Mas consideremos então que o cinema é arte, tampouco quero negá-lo absolutamente. Em última instância, a arte tem um papel formativo muito forte e extraordinariamente importante, do qual pode depender o nosso futuro. Por isso, a arte contemporânea encontra-se numa encruzilhada e pode ir em qualquer destas duas direcções: a primeira, a que parece estar a dominar, é fazer do ser humano um criminoso. A outra, é situar e instruir o homem nos seus próprios valores mais profundos, inscrito no seio de uma tradição humanista, sendo que a arte europeia é o fundamento do humanismo. Assim, e voltando à questão de antes, teremos que considerar a existência dum vínculo inseparável entre cinema e literatura. O artista deve por a literatura por cima do cinema. Por cima de qualquer actividade artística deve estar a literatura, ela é o fundamento de toda a criação estética.

«o cinema é uma das artes claramente menos desenvolvida, menos perfeita desde o ponto de vista formal, [...] o cinema tem muito pouco para dar.»


P: É realmente admirável a sua dedicação pela literatura!...

S: Repito: a fonte de toda a arte é a literatura. É pela literatura que começam a arte e a cultura. Sem literatura não há humanidade nem civilização. A literatura é como uma coluna vertebral de toda a vida cultural e humanista. É a mais livre e íntima de todas as artes, a arte que mais desenvolve o ser humano. Todas as outras formas de arte põem o homem em situação mais passiva. Quanto mais a humanidade se afaste da literatura, mais se acercará do caos, do vazio, da inanidade. E hoje, tristemente, a literatura ocupa um lugar muito pequeno no nosso dia a dia. Como preferimos a passividade, damos demasiada importância e atenção ao cinema.

P: Mas a cultura europeia de que fala, também possui uma inestimável e umbilical componente visual. A história da pintura é longa e decisiva, e depois houve a invenção da fotografia, e, enfim, do próprio cinema...

S: Não pode negar-se. Claro que o cinema também é devedor da pintura. No cinema, a ilusão óptica da tridimensionalidade sempre desafia o realizador, mas é uma mentira absoluta. Todos sabemos que a fita é plana e que a tela de projecção também. A composição e a perspectiva (ou a falta de ela, o uso do plano bidimensional, é muito difícil de lograr no filme) são muito importantes para o cinema e reportam ao influxo da pintura no cinema. É enorme a influência de Rembrandt ou Da Vinci, por exemplo, através da perspectiva... dos planos nos quais o fundo e os personagens estão em íntima relação. De resto, é evidente e indesmentível que o cinema recolheu elementos de outras artes. Absorveu a música e a fotografia, e naturalmente, muitíssimos aspectos da representação teatral. Por isso é importante que um profissional de cinema seja conhecedor da grande tradição artística. Mas o melhor e mais autêntico contributo do cinema é o tempo, é o passo do tempo. Para penetrar a fundo no enigma que é homem, também é necessário conhecer o que é a passagem do tempo. Quem sabe gerir o tempo, será um realizador sábio e grande.

P: Pode explicar-me melhor esse aspecto sobre o tempo? Refere-se à duração do filme, à sequência da montagem, ao tempo como uma espécie de entidade ou substância?

S: Filosoficamente talvez tenha que reconhecer os meus limites. Mas trata-se de uma intuição que decorre dos meus anos de trabalho, que me dão alguma legitimidade crítica. Vamos a ver: nunca o escritor nem o pintor, nem o compositor, nunca nenhum artista chega verdadeiramente ao fundo da essência das coisas. Cada um deles se detém num momento, ou num pormenor, ou diante de uma passagem. Aquilo que se pode chegar é aos detalhes da vida, não à sua plenitude. Nesta medida, o cinema até dispõe de um potencial superior, que ainda não foi totalmente actualizado: é que o cinema sim, pode mostrar todos os detalhes. Dá muito trabalho, mas pode-se recriar tudo - o contexto artístico, a atmosfera física e emocional, a arquitectura, o espaço, um enquadramento filosófico... Construir todos os detalhes da vida é o maior desafio do cinema enquanto arte. E por cima de todos esses elementos da vida, entra o factor do tempo, como o mais proeminente. Os limites do tempo nunca se poderão dominar ou controlar de forma absoluta. Podem-se experimentar fazer tipos de montagem diferentes, que não se vai nunca esgotar o factor temporal. Impõe-se ante as infinitas ambições dos cineastas.

«A nossa compreensão da política é escassa. Só a arte pode reflectir de forma adequada sobre certos fenómenos.»


P: A sua tarefa, como realizador, portanto, é desafiar o tempo? É esse o sentido secreto do seu cinema?

S: Desafia-se o tempo, tentando entender, escutar, olhar. Urge estar de acordo (ou em acorde), sintonizar, estar silencioso, ocultar-se. Há que aceitar a situação, lidar com o possível do humano nas circunstâncias da vida. O filme onde levei mais longe este esforço foi a Arca Russa. Foi um intento de negar a ordem do tempo – assumir que o tempo não se pode fracturar, não se pode violentar, montar, fusionar... Mas subsiste o enigma: é difícil saber que atitude tomar face ao tempo. Está para vir o director de cinema que consiga solucionar cabalmente este problema. Terá a essência do cinema na sua mão.

P: Antes criticava ferozmente o cinema, dizia que era uma arte imperfeita, que a maior parte do cinema que se faz é vago e sem interesse, mas agora está-lhe a fazer o maior dos elogios, a outorgar-lhe um ingente potencial artístico...

S: Que lhe posso dizer? Somos um pequeno grão de um enorme edifício que é a cultura. A arte já existe, já se fundamenta a si mesma, os seus parâmetros principais já estão delimitados. O artista aporta pouco. Embora por outra parte, mesmo nas actividades ou labores mais elaborados da arte, o resultado harmonioso depende frequentemente do talento do artífice. Onde está o limite? No talento ou na técnica? Confesso que não pensei o suficiente sobre o tema, que desconheço a resposta final.

«Hitler não é um não é um caso isolado, é um problema global da humanidade.»


P: Tentemos aprofundá-la. Exactamente qual pensa que seria a função ou o estatuto do artista? Um técnico? Um criador iluminado? Pode ser também um referente ético?

S: Em política nem tudo está permitido. Mas na arte gerou-se o mito que sim, que o artista pode dizer tudo o que quiser. Isto obviamente não pode ser assim. O artista deve ser livre, mas não pode demitir-se das suas responsabilidades. A arte cruza fronteiras e exerce uma força muito influente. Hoje temos na comunicação social um exemplo do que não se deve fazer. Os média fomentam prevalecentemente a decadência, a abominação. Boa parte da reacção do mundo muçulmano face ao Ocidente deve-se a pura manipulação ideológica que se produz de ambos os lados. Ainda estamos a tempo de travar este caminho.

«Por cima de qualquer actividade artística deve estar a literatura, ela é o fundamento de toda a criação estética. [...] É pela literatura que começam a arte e a cultura. Sem literatura não há humanidade nem civilização. Quanto mais a humanidade se afaste da literatura, mais se acercará do caos, do vazio, da inanidade.»»


P: Através da arte, das suas virtualidades formadoras, enlevadoras, catartíticas?

S: Temos que crê-lo. Nessa aspecto não há arte antiga ou nova, a arte foi criada e permanece. Ao longo do tempo, pode-se apresentar e representar o ser humano de formas novas através da arte, mas o artista autêntico tem que aspirar a comprometer-se com o marco geral da arte, que é expor e trabalhar com os valores profundos da cultura e da humanidade. Isto constitui uma limitação ao trabalho do artista, porque é mais o que ele deve fazer do que aquilo que ele pode fazer. É menos livre desta forma.

P: Mas sobre o cinema actual mantém a sua posição de antes? É realmente manco de qualidade? Quais os filmes que merecem ser vistos?

S: Há cada vez menos gente que busque um saber humanístico profundo no cinema. Falo não só dos espectadores, acontece mesmo entre os críticos e os profissionais. O cinema pode ser sério e profundo, mas hoje o tipo dominante é essencialmente lúdico e de diversão, repleto de imagens de violência e desumanização.
As pessoas hoje associam o cinema à violência e à pornografia. Esta última até é um mal menor, recai na escolha de cada um. Mas a violência exerce de facto muita influência sobre a vida dos humanos, trespassa uma agressividade que está muito presente, uma ideologia que de alguma forma contém inclusive o germe do terrorismo. A arte pode fomentar a tolerância, ou ser usada para promover a ignorância e o conflito. É o que sucede em certa medida actualmente na cultura muçulmana, para dar o exemplo que lhe estava referindo antes.

P: Se assumirmos que a sua obra não está nesse lado da barricada, ela perfila-se num contexto contra-corrente, move-se em círculos mais artísticos, autorais, ou alternativos. É-lhe fácil arranjar financiamento para os seus filmes? Tem bom relacionamento com os seus produtores?

S: O cinema que fazemos, eu e os meus colaboradores, não é caro, em termos de dinheiro não é muito custoso. Um filme como «A Arca Russa» seria muito mais caro fora da Rússia - quer na Europa, quer nos EUA. Uma vez agendados e disponibilizados, os recursos técnicos estão nas mãos do realizador, e este tem que fazer o filme em função das possibilidades reais, atendendo à qualidade profissional, ao nível elevado de criatividade, e ao nível estético do nosso cinema, esses são os critérios fundamentais.
O realizador, portanto, não está apenas a fazer um filme, mas também a gerir recursos técnicos e humanos. Dirigir a rodagem de um filme é uma questão económica, social e política. É preciso saber evitar os conflitos pessoais, por exemplo. Depois, uma constante que rodeia a obra de um realizador é que tem que romper muros muito densos... por isso há que trabalhar muito...

«o melhor e mais autêntico contributo do cinema é o tempo, é o passo do tempo. Para penetrar a fundo no enigma que é homem, também é necessário conhecer o que é a passagem do tempo.»


P: O seu cinema parece abordar com igual facilidade o documentário e a ficção. Poder-se-ia dizer que se sente à vontade em ambos os registos?

S: Na realidade entendo que não há muita diferença. Se há um aspecto que privilegio na minha obra, seria que ela aponta sempre numa direcção artística. Por um lado, respeitam às formas da arte clássica, já que busco alimentar-me da música, da pintura e sobretudo da literatura. Mas por outro lado, também procuro mostrar a vida contemporânea das gentes. Estes dois objectivos podem concretizar-se tanto no plano documental como no ficcional.

P: Preocupa-lhe então forjar um equilíbrio entre o passado, a tradição, por um lado, e a actualidade que o rodeia, por outro?

S: Sem dúvida. Estamos inscritos em ambas as coisas. Por um lado, uma grande tradição artística que devemos conhecer e respeitar. Mas por outro, estamos implicados num mundo e num tempo que é o nosso e devemos reflectir sobre eles. É por essa razão que disponho de um grupo de trabalho muito internacional, constituído por pessoas que conhecem a fundo a arte clássica russa, mas que ao mesmo tempo seguem de perto as novidades tecnológicas.

P: Mencionou especificamente a tradição artística russa. Acha então que, tematicamente, a gesta da Rússia seria a sua principal inspiração?

S: Sim. A Europa está hoje num processo de unificação, constituirá um espaço muito aberto. Isso poderá ser muito vantajoso no futuro, se as pessoas souberem tirar partido. Antevejo uma vida prometedora e maravilhosa. Ora, a Rússia está à margem deste contexto. É um país enorme, com uma imensa herança cultural. A Rússia, diria, é uma experiência única e singular, com grandes vitórias e derrotas históricas, um país que segue um destino particular, que muitos não conseguem entender. Mas sem dúvida, é um país que pode maravilhar e surpreender, e continuará a fazê-lo.

P: Nesse aspecto, portanto, acho que o cinema russo tem uma história e uma idiossincrasia próprias, que o fazem diferente do ‘cinema europeu’?

S: Estará mais próximo do cinema europeu que de outros cinemas... Mas acho que uma das tarefas da arte passa por proteger os interesses do país e da sua cultura, contra a cultura global, desvirtuada e expropriadora que hoje predomina...

P: Uma função de resistência, quer dizer?

S: Claro. A cultura não existe sem a arte. Esta é uma das suas dimensões mais importantes. Ao passo que a arte pode renunciar à cultura, avançar de costas voltadas para esta. É por isso que actualmente muita produção artística não expressa este carácter nacional da cultura. Dou-lhe um exemplo: praticamente não há filmes sobre as minorias étnicas que existem na Rússia, um país que muita gente não sabe que é linguística e culturalmente plural. Isto é lamentável. E de resto, também acontece na Europa, é um problema ignorado pelo cinema. Portanto, eu penso que deve fazê-lo: a arte deve apoiar e apoiar-se na cultura nacional.

«O artista deve ser livre, mas não pode demitir-se das suas responsabilidades.»


P: Realmente, no seu cinema, sobretudo nos primeiros filmes, figura bastante a imagem da Rússia como terra-mãe, enfim, pelo menos é uma leitura possível da forte presença que ocupa a Natureza no seu trabalho: Uma natureza imponente, que não é agressiva, mas serena, imutável, mas que acaba por opor-se à fragilidade do ser humano, que de alguma maneira o transcende e ofusca. O que nos propõe é uma reflexão sobre o destino humano, sobre a relação entre a Humanidade e o Cosmos?

S: De acordo. A Natureza sempre foi protagonista da arte asiática e de alguma arte russa. O cinema não é pois a primeira arte a descobrir e abordar dessa forma a natureza e a inferir a sua importância. Na verdade, procuro algo desse fio condutor entre a natureza e o humano: essa contraposição entre a natureza, a paisagem, e o rosto humano. A amplitude do espaço torna-se o sujeito, ou o protagonista, compenetrando-se com a figura humana.
A natureza também é esperança e constância. É algo importante e maravilhoso. No Homem não há esperança nem constância. A Natureza está na sua plenitude. Sem ser racional, ela tem as suas regras. O Homem muda constantemente, e não parece haver limite para o baixo e mesquinho a que pode chegar. O homem é o mais inteligente, mas não o mais importante. Na natureza há uma harmonia, e no entanto, é verdade que a natureza também pode ser violenta, pode prejudicar e destruir o humano. Mas vejo mais este impulso muito forte de harmonia, de constante renascer da vida.

P: Falou do baixo e mesquinho a que pode chegar o homem. Tem-se apontado que é esse o sentido da sua trilogia sobre os Ditadores da II Guerra Mundial, esse período ignominioso da história humana: Moloch sobre Hitler, Taurus sobre Lenine e Staline e o Solntse («Sol»), sobre o Imperador Japonês Hirohito.... Era realmente esse carácter vil e disforme da natureza humana que procurou retratar nestes filmes?

S: Vejo estes ditadores como um fenómeno muito complexo. De tal maneira, que seria tudo mais fácil se pudéssemos dizer que estes personagens não são do nosso mundo, que pertencem, para dizer algo, a outro planeta. Mas isso não é verdade. O problema central reside em que são humanos. Hitler não é um problema em si mesmo, não é um caso isolado, é um problema global da humanidade. Porque possivelmente, e infelizmente, ele não é uma excepção: Se ele chegou ao poder provavelmente é porque representa outros milhões de Hitlers potenciais que existem. O próprio Hitler não ocultava nada, Mein Kampf já continha todo o projecto nazi, e foi escrito antes de chegar ao poder. Neste sentido, também não podemos ver o Nazismo meramente como um fenómeno político do Século XX, é algo anterior, a nível de mentalidades, mas que foi madurando e acabou por sair à superfície da forma que todos sabemos.

P: Fellini (quem, curiosamente, à sua semelhança admitia ter chegado ao cinema por acaso e não por vocação, mas que depois o assumiu como o seu destino) também pensava dessa maneira. Dizia que o Fascismo não é na sua base um movimento político, mas «um estado de espírito, uma debilidade de carácter» e que existe muito para além de um determinado contexto histórico...

S: Desconhecia essa posição, mas parece-me correcta. A História, porém, não aprecia este tipo de leitura, porque normalmente se entende que o caminho do ser humano é a liberdade e não a opressão. Mas o problema existe e não pode escamotear-se. A nossa compreensão da política é escassa. Só a arte pode reflectir de forma adequada sobre estes fenómenos. E assim devolver na sua essência de pessoas comuns, inclusive vulgares e medíocres, a estes ditadores, para que as suas figuras possam ser entendidas.

«Dirigir a rodagem de um filme é uma questão económica, social e política.»


P: Acima de tudo, portanto, não abdica da função social, política e pedagógica da arte?

S: Evidentemente. A arte é como uma medicina: a medicina não julga, só dá um diagnóstico, uma história clínica. Deixa o julgamento aos outros, para que sejam eles a crer e a ter suas esperanças.

P: Antes aflorámos as noções de compromisso e liberdade na arte. Volto ao tema porque se a arte é controlada desde a política então esse objectivo clínico que acaba de referir estará em risco. Falo nisto porque começou a filmar ainda na era soviética e sei que experimentou problemas com a censura política e o descrédito das instituições...

S: Actualmente, não sofro nenhuma censura ou pressão, seja por parte do Estado, seja dos produtores. Mas claro que não foi sempre assim. Na época soviética tinha muitos problemas com as instituições que controlavam a criação artística, problemas que agora não tenho. No entanto, não creio que isso tenha constituído um ponto de inflexão nas minhas preocupações estéticas, que isso tenha influído na minha carreira. Custa-me pensar que haja uma relação entre a minha obra actual e a práxis política actual do meu país. Preocupam-me os problemas mais ancestrais da Rússia.

«A natureza é esperança e constância. É algo importante e maravilhoso. No Homem não há esperança nem constância.»


P: Mas há pouco dizia-me que se interessa pela vida das gentes contemporâneas... Que problemas ancestrais são esses?

S: Referi-me concretamente à situação política. Não é que não me interesse por essas questões, dizia era que não vejo uma relação directa ou concreta entre esse estado de coisas e minha evolução artística. a Rússia passa presentemente por problemas políticos e económicos complexos e não vejo uma saída clara para esta situação. A juventude tornou-se muito agressiva, gerou-se muita criminalidade. É uma consequência da pressão que o Estado exerce sobre as pessoas, que me parece ser totalmente diferente do que se passa na Europa. São os próprios russos que terão de encontrar a saída, senão não há saída. Quando falava de questões ancestrais reportava-me a algo que já lhe comentei, que a Rússia é um país enorme, a nível de superfície, com uma grande diversidade cultural, que considero uma riqueza, e que nem sempre tem sido devidamente considerada nem valorizada.

P: Relativamente a essa ideia de que terão que ser os russos a reconhecer e solucionar os seus próprios problemas, poder-se-ia dizer que é um dos fios condutores de Mãe e Filho? Neste filme vemos uma mãe gravemente doente, que podíamos interpretar como a Rússia, no seu actual cenário de crise, e que é levada em braços pelo filho – ou seja, as novas gerações, que detém essa responsabilidade de superar as dificuldades de fazer avançar o país, de reconduzi-lo à sua identidade ou grandeza... Nesse caso, filme seria uma acuradíssima metáfora política, sem usar uma única frase ideológica...

S: Já não é a primeira vez que me comentam essa leitura. Acho-a inteligente, mas também um pouco rebuscada. No final, a mãe morre, e também não penso que a Rússia incorra nesse perigo! A Rússia, como lhe apontei, dispõe de uma pluralidade cultural imensa no seu território nacional, além de uma colossal tradição artística e cultural. Mas sempre teve uma situação política, social e económica grave. Dá-me a sensação que nunca houve um político de êxito em toda a história da Rússia! Mas asseguro-lhe que não tinha nada disto em mente quando realizei Mãe e Filho. Neste filme, tal como em Pai e Filho, o que me interessou foi perscrutar o olhar da intimidade nesta relação humana fundamental que existe entre pais e filhos, procurar o amor e a ternura, enfim, abordar a questão na relação no plano psicológico, emocional e espiritual, como um retrato dos afectos que podem existir e perdurar neste relacionamento tão estreito e essencial. No caso da figura da Mãe é bastante mais evidente, e foi por isso que também senti necessidade de dirigir um segundo filme, sobre as relações entre um pai e um filho, para mostrar um modelo de pai que infelizmente não é muito trabalhado na arte, que no fim de contas socialmente está desacreditado, mas que creio importante, sumamente importante - ver como a figura do pai também pode ser sinónimo de afecto, carinho, cuidado e proximidade.

««Custa-me pensar que haja uma relação entre a minha obra actual e a práxis política actual do meu país. Preocupam-me os problemas mais ancestrais da Rússia. A Rússia é uma experiência única e singular. Mas nunca houve um político de êxito em toda a sua história!»»


P: O nosso tempo está a acabar. Quer falar-me um pouco dos seus projectos futuros?

S: Continuarei com a tetralogia dos ditadores. Haverá um filme mais, um quarto filme, mas de momento não quero entrar em detalhes. E prosseguirei também com a trilogia das relações familiares, falta um filme, que será sobre a relação entre um irmão e uma irmã.

P: Bom, teremos que terminar. Dentro de pouco falará também aos estudantes de cinema e audiovisuais desta Universidade. Que lhes dirá? Que tem a dizer a um jovem realizador que agora se aventura para isso? Aproveito para perguntar também se gosta de ensinar ?

S: Não tenho experiência como professor. A razão pela qual não dou aulas é porque não creio que seja competente para isso. Mas apesar de tudo gosto muito de participar nestes encontros. O que direi a estes jovens, se me quiserem escutar, é que não tenham medo de trabalhar e de equivocar-se. A arte não é demagogia, é um trabalho íntegro e sério. Há que trabalhar e aprender com perseverança, sendo necessária uma ampla vocação e formação humanísticas. A parte técnica pode-se dominar razoavelmente bem em dois anos. Mas é preciso não confundir a arte com a sua parte técnica. O mais importante é a constância, saber fazer perguntas, não ter medo da sua própria independência como criador.

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* - Entrevista elaborada por Alexandre Nunes de Oliveira, a partir de duas conversas com o realizador Alexander Sokurov nos dias 2 e 3 de Junho de 2005, no Centre de Cultura Contemporània de Barcelona (CCCB) e na Universitat Pompeu Fabra, também naquela cidade, por ocasião do CICEC – I Congrés Internacional sobre el Cinema Europeu Contemporani, no qual Sokurov foi um dos homenageados.
Alguma da informação foi completada ou enriquecida com declarações do cineasta produzidas nas conferências de imprensa e na prelecção aos alunos da referida universidade.
Apresentamos também os nossos agradecimentos a dois docentes da citada instituição académica: o Prof. Domènec Font, organizador do Colóquio, e à Professora Tamara Djermanovich, pelo seu notável esforço de tradução in loco entre o castelhano e o russo.

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