ALEXANDER SOKUROV - um cinema luminoso
ALEXANDER SOKUROV - um cinema luminoso
Alexander Sokurov nasceu no dia 14 de Junho de 1951, em Podorvikha, um lugar da remota Sibéria, como gosta de frisar. A sua paixão fundamental foi desde cedo a literatura, e quando se mudou para Moscovo, para licenciar-se em História, queria entrar para a rádio. Felizmente para nós, que seguimos com deslumbramento a sua obra, o cinema tornou-se o caminho que trilhou.
De forma singular, legou-nos até agora filmes intensos, plasticamente soberbos – a fotografia, que atinge cromatismos improváveis, é trabalhada de forma inovadora e radical, com ajuda de filtros e distorções, até provocar efeitos capazes de nos fazer ver o mundo de outra maneira; a música, com fragmentos, colagens e remisturas de sinfonias irreconhecíveis. É um cinema de pequenos detalhes e grandes obras. Luminoso, pleno, perfeito.
A sua primeira longa-metragem, «A Voz Solitária do Homem» (Odinokiy golos cheloveka), data de 1978, e correspondeu ao trabalho de fim de curso que mereceu a incompreensão dos responsáveis da escola moscovita, de tal forma que a sua exibição foi proibida e a película esteve inclusivamente para ser queimada. Quem já a viu, como nós talvez possa opinar que tal perda teria sido criminosa para a história do cinema, uma vez que para além de ser uma belíssima estreia, contém já muitas das linhas condutoras da estética e do imaginário deste autor, na altura claramente devedor do mestre Andrei Tarkovsky, a quem de resto Sokurov não escondeu uma dedicatória. O apoio moral do autor de «Solaris» e «Andrei Rubliov» terá sido, na verdade, decisivo para que o na altura seu discípulo não soçobrasse ante os óbices e o repúdio institucional. Mas a reviravolta política levada a cabo com a Perestroika permitiu ao jovem realizador siberiano recuperar a obra, levando-a remasterizada ao emergente Festival de Locarno, na Suíça, onde ganharia o Grande Prémio do Júri na edição de 1987.
Vendo «A Voz Solitária do Homem», que está baseado em textos do escritor Andrei Platonov[1], damo-nos conta que se trata de um título programático. A humanidade tem voz, produz discursos e textos, mas essa voz é solitária, ou se quisermos silenciosa, porque diz afinal muito pouco, na medida em que o seu eco é curto, o seu alcance limitado, as suas repercussões diminutas no tempo e no espaço. A palavra, tal como a acção antropóide em geral, são efémeras, localizadas, inconsequentes, em especial perante aquela Natureza imensa que permanece estática e alheia - mas que sobretudo permanece - enquanto que o indivíduo humano vive absorto pela passividade, ou fustigado pela inquietude que se traduz na busca continuada de algo que nunca se encontra ou logra (há personagens que falam reconhecendo que já estão mortos, tal é a inutilidade da palavra – e da acção), enfim, vive lapidado e delapidado pela angústia, pelo desespero, pela frustração, pela ausência de um sentido real que modele e impulsione a existência.
Assim começou o percurso daquele que é um dos realizadores mais apreciados da actualidade, pela radicalidade, originalidade e persistência do seu trabalho. De Tarkovski, assumida e principal influência originária, Sokurov recolheu o interesse, a fixação, por temas metafísicos que afligem o humano no seu destino essencial, tal como uma certa psicologia, profunda, inóspita, transmitida através de silêncios, de olhares longos ou bruscos, de gestos, de palavras intangíveis e enigmáticas. E claro, essa presença absoluta da Natureza, hoje em dia uma prerrogativa do cinema russo em geral[2].
Para a maior parte dos europeus, de facto, habituados a outras dimensões espaciais e demográficas, será difícil imaginar o que são essas imensas extensões de terra: campos e planícies intermináveis, longas cordilheiras repletas de densa vegetação, amplas zonas desertas e insalubres. Seguramente nesse aspecto a cultura russa pode desenvolver uma noção particular da relação entre o humano e a natureza ou o cosmos: perante esses cenários naturais vastos e imperturbáveis, a pequenez do indivíduo, e mesmo a volatilidade da própria comunidade humana, aparecem como algo de passageiro e irrisório, inerme presença antropológica à qual essa mesma natureza, serena a maior parte das vezes, violenta quando se apraz, resta na total das indiferenças.
Por ventura a maior evidência dessa visão no cinema de Sokurov é o final do «Dia do Eclipse» (Dni zatmeniya, de 1988)[3]: um plano fixo que se sustém por vários minutos, com aquele amarelo tórrido e um pouco doentio que domina toda a obra. No meio da paisagem árida e desertificada, basta de rochas e pedras arenosas, esconde-se aquela mediana e medíocre cidade onde afinal nada de especial acontece, como um reflexo de que a vida humana não tem realmente tanta importância relativamente ao mundo como tal. Essa povoação, lentamente, e sob o mesmo plano fixo, vai tornando-se cada vez mais difuminada, desfocada, até que finalmente desaparece por completo, ao passo que nenhum elemento natural, nem sequer o céu vagamente nublado, apresentaram sinal de mudança alguma. Esse foi o verdadeiro eclipse, o desaparecimento, por defeito, por inútil, da presença do homem: a sua acção é inócua e insignificante. Só a natureza se mantém, só ela perdura[4].
Nestas primeiras obras de Sokurov outra constante é a figura de um médico como um dos personagens principais. O médico representa hoje um certo espírito de vitória da humanidade sobre o reino microbiológico. A forma como a medicina avançou nos últimos duzentos anos está coroada de êxito. Inúmeras doenças foram controladas, sendo impacto disso o aumento da esperança de vida, sobretudo a redução da mortalidade infantil. Os médicos de Sokurov, no entanto, são muito diferentes. Não têm hospitais, praticamente já abdicaram dos seus instrumentos, limitam-se a vaguear solitários por um mundo onde não encontram lugar, carregando o fardo da sua própria existência carente de um sentido que seja claro. Mais: não conseguem salvar nunca ninguém, nem os seus próprios familiares. Os personagens a quem assistem acabarão por morrer, ante a impotência do olhar clínico que unicamente pode antecipar essa mesma morte, que apenas pode verificar in loco a sua pungente inevitabilidade. A finitude do humano fica exposta, mesmo – ou sobretudo - através do fracasso concludente deste domínio em que a evolução técnica é tão brilhante e certeira. Estamos no plano do trágico: o ser humano não pode desafiar a morte, nem ir contra a força implacável da natureza e do seu congénito aliado - o Tempo.
Sokurov atribui, com efeito, notável importância ao tempo. Entendido em múltiplas acepções, esta categoria joga no seu cinema e na sua terminologia um papel chave e crucial. O tempo respeita primeiro à duração do filme, que é a obra, e nesse aspecto é susceptível de alguma manipulação, ou pelo menos tentativa, que é ao mesmo tempo um desafio em aberto. O realizador russo é consciente de ter sido com «A Arca Russa» (Russki Kovcheg, 2002) que levou esse esforço mais longe até agora. O risco assumido de gravar uma longa-metragem de hora e meia, num único take, sem qualquer corte nem montagem, podia não parecer tão vertiginoso se fosse um filme intimista, com poucos recursos cénicos e humanos, como é o caso de «Mãe e Filho». Mas «A Arca Russa» envolveu mais de 2000 actores e figurantes. Foi ensaiada cuidadosamente durante seis meses e finalmente rodada no dia 23 de Dezembro de 2001, percorrendo 33 salas e galerias do Museu Hermitage, servindo-lhe de verdadeiro bilhete postal, ou visita guiada, ao mesmo tempo carregado de uma eivada atmosfera onírica e de um aparato performativo impressionante. Recorde-se a faustosa cena do baile, por exemplo, na qual toca efectivamente ao vivo a Orquestra do Teatro Kirov, também de São Petersburgo, dirigida pelo soberbo maestro Valeri Gergiev, ou, já no final, a da Escadaria, espectacular, onde vamos escutando voyeuristicamente as conversas de vários aristocratas urbanos e de província, enquanto a câmara desce a uma harmoniosa cadência até à saída do edifício.
N’A Arca Russa, de facto, a câmara avança praticamente sempre ao mesmo ritmo, oferecendo a quem vê esse sereno compasso de um tempo substancial, ontológico, que transcorre de forma absolutamente essencial a cada segundo, sempre presente. O espectador lúcido não pode evitar o frisson de pensar que poderia passar se alguma coisa correra mal - pois teria que começar-se a filmar novamente desde o início. O tempo é o protagonista total do filme, até porque o que podemos chamar ‘acção’ (neste contexto ganha um significado bastante peculiar) transcorre vários séculos, fazendo desfilar os czares, os conspiradores políticos, os grandes escritores e músicos, em avanços e recuos que porém escapam ao entendimento de quem seja menos avisado sobre pormenores da história russa.
Pensará o leitor que pela relevância dos motivos do tempo e da natureza ou cosmos no cinema sukoroviano, apresentam-se por deslindar possíveis articulações entre o seu cinema e o pensamento de um Martin Heidegger, por exemplo. Afloramos esta perspectiva em função do apelo da natureza, ou da terra, tão manifesto na segunda fase do pensador da Floresta Negra, e também da sua apreciação do tempo enquanto vector estruturante e suportador da realidade ontológica, desde o projecto abandonado de Sein und Zeit.
Outros planos, ainda assim, poderiam legitimar ou fecundar esta aproximação. Um deles, salientemente, a dedicação pela literatura, entendida como a arte primeva e axial, fonte da qual necessariamente emanam todas as outras artes e inclusive as formas culturais. Ainda que tudo aponta para a existência de uma divergência não de todo insignificante: Heidegger refere-se claramente à poesia, ao poema como gesto fundador da palavra e da própria existência, ao passo que Sokurov prefere sem lugar a dúvidas a completude do romance em prosa, na sua qualidade de documento sobre a espiritualidade e a psicologia íntima, ao mesmo tempo como nascente que aporta e penetra toda a civilização e, claro, toda a arte.
Por fim, outro ponto de contacto seria o valor atribuído à pertença a uma comunidade, ao processo histórico, ao enraizamento numa tradição cultural artística, como algo em que estamos inscritos e que faz parte indelével do nosso património onto e filogenético. Sokurov também nos fala abundantemente dessa necessária imersão identitária, tal como do dever ético, político, social e pedagógico que a arte deve ter respeito à cultura de cada país e de cada povo, uma função que não deixa, hoje em dia, de ser patentemente resistência contra a globalização expropriadora – e, diria Heidegger, desarraigadora -, tal qual contra a decadência propagada pelos meios de comunicação social e favorecida ou sancionada pela classe política moralmente inepta. A arte, a grande arte, que existe desde sempre nos seus mais robustos fundamentos, não prescinde no entanto da liberdade do criador, da sua marca autoral e singular. O artista situa-se portanto precisamente nessa encruzilhada complexa entre a indispensável formação técnica nos meios e no domínio das ferramentas artísticas, o talento e a criatividade, o conhecimento profundo das letras, da história e da estética, mas também o compromisso relativamente aos valores que o director russo apelida de humanísticos, à função moralmente edificante e enriquecedora que subjaz à própria arte.
O cineasta russo defende-se bem neste aspecto. A ideia de que os ideais da arte devem ser profundos e estar à altura dessa responsabilidade de erigir valores fecundos para a espiritualidade humana é de facto antiga. Encontramo-la, categoricamente, no Tratado sobre o Sublime, escrito no Século I d.C., atribuído a Dionisio Longino, e onde se lê que «o Sublime é o eco de um espírito nobre»[5]. Percorre como um veio todo este escrito a noção que o sublime, forma mais excelsa da arte, não é possível alcançar-se somente através de expedientes técnicos ou destrezas de estilo. Ainda que estes sejam fundamentais, são-no mais ainda a riqueza espiritual e uma estatura moral caracterizada por pensamentos elevados e sentimentos incólumes. Porque, também ali achamos, é esteiro decisivo da arte a sua função moral e pedagógica, socialmente edificante, mas ao mesmo tempo a sua valia não se pode realizar nem cumprir sem o talento criativo do autor, sem a entrega vívida da sua heurística e mesmo da sua personalidade empenhada.
Seguindo esta ordem de ideias, Sokurov cunhou, no que parece ser aviso unânime, até agora, a sua obra maior em «Mãe e Filho» (Mat i Syn, 1997). Visualmente admirável, é uma película que não chega à hora e meia de duração, com um ritmo sereno e apaziguador, que convoca a cumplicidade interior do espectador. A natureza volta a aparecer esplêndida, na sua calma inquebrantável, na sua superior permanência, à beira do sublime e do transcendente.
A acção transcorre num lugar isolado, repleto dessa força ubíqua da natureza intacta, onde há apenas uma pequena casa e alguns caminhos de terra batida como precárias presenças hominais. Os dois protagonistas são uma mãe doente, moribunda, e o seu filho que se encarrega de cuidá-la com todo o zelo e dedicação. Numa inversão de papéis, aqui é o filho que transporta em braços a mãe, retribuição de um amor, e da origem da vida, que a progenitora lhe deu antes. Esta viagem ao epicentro da filiação, da relação mais elementar que pode ligar duas pessoas, remete manifestamente à exaltação dos afectos como uma das maiores riquezas do ser humano, leitmotiv capital da estética sukoroviana.
Uma alternativa leitura política, que no entanto o director recusa ter presidido à feitura do filme, também paira sobre esta obra ímpar. À semelhança do que ocorreu com «Dia do Eclipse», entendida pelos seus compatriotas como uma alegoria sobre as dificuldades da resistência subjectiva ao autoritarismo castrador, mais que propriamente um retábulo existencial, há igualmente quem lhe entreveja, em «Mãe e Filho», e apesar de não conter uma única linha de diálogo ideológica, uma cristalina metáfora política sobre a situação actual da Rússia: a terra-mãe, como orgulhosamente lhe chamam os seus filhos, passa por um grave período de crise, a sua identidade posta em causa, definha. Os descendentes, ou seja, as novas gerações, enfrentam-se à obrigação de a acarinhar, de a levar em braços, de continuar a gesta do país, o maior do mundo em extensão, o que não pode ser de somenos.
Tecnicamente, a imagem aparece quase sempre alongada, abrindo passo a novéis maneiras de ver o mundo, à abertura de novos umbrais no horizonte de chegada de quem vê. E de quem ouve: a música, tratada de forma fractal e reelaborada, quase indetectável, entretece um ambiente sonoro absolutamente único que também contribui para a obra de arte total, para o cinema na sua pureza e perfeição.
Deixamo-nos por aqui, reportando-nos ao que o próprio Sokurov alerta: para o peso excessivo que podem vir a ter as armações conceptuais, os seus significados demasiado rebuscados e pesados: «A realidade não é sequer a palavra do autor, mas a sua obra, o que está fazendo», confidencia-nos.
Alexandre Nunes de Oliveira
(Diário do Sul/Universitat Autònoma de Barcelona)
· Para informação detalhada sobre a filmografia de Alexander Sokurov, recomenda-se:
http://sokurov.spb.ru/island_en/flm.html
http://www.imdb.com/name/nm0812546/
[1] - guerrilheiro e poeta da Revolução Bolchevique, anos mais tarde perseguido e ostracizado por Estaline. Viveu entre 1889 e 1951.
[2] - Como podemos comprovar através de muitas das obras recentes de realizadores como Lydia Bobrova, Andrey Zvyagintsev, Bakhtier Khudoinazarov, Alexei German Jr., Ilya Khrzhanovsky, Boris Khlebnikov, ou Alexei Popogrebsky, enfim, toda uma neófita e promissora geração de cineastas russos, que se destacam pela sua sensibilidade humana e a acurada qualidade visual. Lamentavelmente, é um cinema pouco exibido comercialmente, assim votado a um lamentável e injustíssimo desconhecimento.
[3] - Está baseado num livro de ficção científica escrito pelos irmãos Boris e Arcady Strugatsky (que influenciaram a obra de Tarkovski, em especial Stalker e Solaris) cujo título da tradução inglesa é Billion Years Before the End of the World, ou A Milliard Years before the End of the World, segundo outra versão. Com esta longa-metragem Alexander Sokurov debutou no Festival de Berlim (1989), onde conseguiu uma menção honrosa. A banda sonora original e a sonoplastia, respectivamente a cargo de Yuri Khanin e Vladimir Persov, receberam prémios em vários certames.
[4] - Filmado nos anos em que a Perestroika foi levada a cabo, este filme obteve então muito sucesso junto do público russo, tendo sido acolhido com uma recepção bastante mais politizada, em que o protagonista seria um resistente vítima do totalitarismo político e o desaparecimento final da cidade de província representaria o final da opressão soviética. Esta dicotomia entre um simbolismo existencial trágico, por um lado, e a metáfora político-ideológica, por outro, é recorrente na recepção crítica às obras de Sokurov.
[5] - ‘LONGINO’, Tratado sobre o Sublime, IX, 2.
1 Comments:
At Tuesday, February 23, 2010 3:43:00 am, Anonymous said…
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