11deJulho

tendências, souvenirs, beijos esparcidos aos precipícios dessa coisa rugosa que muitos chamam amor, solilóquios, colóquios, provocações e invectivas, enfim, de tudo um pouco, daquilo que sou

Tuesday, May 02, 2006

Theo Angelopoulos em Barcelona


Theo Angelopoulos em Barcelona

- O cinema como acto de amor

Na tarde de 27 de Abril, Theo Angelopoulos, que completava 71 anos nesse mesmo dia, foi aplaudido por um público atento que o viu e escutou na Sala Mirador do Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona, janelas à cidade e ao Mediterrâneo.
O veterano realizador grego revelou uma personalidade encantadora, capaz de momentos de grande eloquência e riqueza poética, deixando-nos impressão da sua imensa cultura cinematográfica, através de referências claras e tão bem moldadas quanto medidas.
A ocasião revestiu o carácter de mesa redonda, perante estudantes, estudiosos, jornalistas e críticos. Aqui fica uma resenha das suas principais ideias, postas em andamento por intermédio das nossas perguntas e das de outros que ali também acorreram.



Pergunta: De onde nascem os seus filmes?

Theos Angelopoulos: Surgem a partir de ideias. Mas as ideias são como borboletas, não se sabe bem donde vêm. Parece-me que nós não as escolhemos, mas que somos escolhidos por elas. Portanto cada caso é um caso. As ideias podem nascer da observação, de momentos especiais e únicos, como um ninho de cegonhas na fronteira turco-greca. Daí me adveio a ideia de filmar «O Passo Suspenso da Cegonha». Portanto, é preciso estar atento, como alguém quando espera o amor...

Pergunta: Mas apesar da especificidade de cada filme, há uma identidade na sua estética, uma continuidade, uma marca de autor: a montagem não é fundamental, mas sim a mise-en-scéne. Podemos dizer que é um cineasta de grandes planos-sequência prolongados, coreográficos até, nalguma medida...

T. Angelopoulos: Costumo dizer que no meu cinema há guarda-chuvas. Mesmo quando não chove. Os guarda-chuvas são sempre pretos. E há homens com impermeáveis amarelos. Falo da busca de um imaginário ou de uma linguagem que se expressa através de uma paleta de tonalidades cromáticas. Relativamente ao que se disse sobre a montagem, estou de acordo. Não gosto do cinema baseado na montagem – é um cinema de atracção, ou então ideológico, como é o caso de Eisenstein. Ainda que no final da sua vida Eisenstein se tenha vindo a aproximar do grande plano-sequência, como se vê através de «Ivan, o Terrível».
Depois, tematicamente, também tenho os meus caminhos, naturalmente. Sou um filho da guerra. Vivi a guerra civil, que foi muito traumática na Grécia. É uma coisa que não se esquece. A guerra marca profundamente uma pessoa. E interrogo-me muito sobre isso, como se chega a uma determinada situação política: Uma ditadura não cai do céu. Há razões para isso. Por isso, o Tempo, em especial o passado e o presente, são muito importantes no meu cinema. Isto é ideológico, mas também estético. Cheguei um dia a esse momento, aconteceu-me. Sou talvez o primeiro cineasta a ter aplicado este método – da indiferenciação narrativa e sequencial entre o passado e o presente no tempo do filme. Os retrocessos temporais não se tratam de flashbacks individuais, como talvez erradamente se possa pensar, mas de uma memória colectiva.
Vamos a outros aspectos. Falou-se da componente coreográfica. De facto, penso que não há nada tão atraente ou sugestivo como uma mulher dançando. Na música, como na dança, há pausas. Há movimento, e depois há pausas. Esta sucessão de movimento e intervalo tornou-se um imperativo para mim porque isso faz também parte da vida quotidiana, também ela está repleta de pausas. E isso faz parte do movimento, é inseparável dele. Desde o meu primeiro filme que existe essa dinâmica. Portanto, há uma maior importância dos elementos plásticos e musicais que dos narrativos. O tempo, como a paisagem, devem ser vistos como interiores e exteriores.
No entanto, para mim, não há só uma maneira de trabalhar. Como acontecia com Hitchcock, por exemplo, que calculava tudo criteriosamente. Para ele a filmagem era tão somente a aplicação de um guião pré-estabelecido até aos mais ínfimos detalhes. René Clair também filmava assim. Para mim, contudo, o guião é uma matéria-prima maleável, que se pode ir modificando. Assim, posso dizer que crio no momento da filmagem. É isso que encontro extraordinário no cinema, a filmagem, não tanto o guião ou a montagem. A obra decide-se na filmagem.

«o importante do meu cinema é comunicar o que nunca foi dito»

Pergunta: E onde leva essa metodologia? A que desígnios preside?

T. Angelopoulos: Há muitos fenómenos no processo criativo que não sou capaz de explicar, mas o importante do meu cinema é comunicar o que nunca foi dito. Algo de novo, como a primeira vez que se faz amor. Na filmagem é isso que se tem que ter em conta.

Pergunta: A referência à mitologia clássica helénica também parece ser um elemento bastante decisivo dos seus filmes. É mais evidente no Olhar de Ulisses, mas também percorre outras obras. Identifica-se com essa dimensão ancestral da cultura do seu país?

T. Angelopoulos: Sim, mas muito particularmente, presto reverência à Odisseia de Homero. É um livro fundador, uma fonte inesgotável. Nele encontramos obstáculos e a superação dos obstáculos, o amor, a dimensão existencial da vida... é uma viagem de «mim mesmo» - de cada um de nós. Mas também desde o ponto de vista estilístico, Homero tem tudo: desde monólogos a grandes cenas de conjunto. Tem finais felizes, que são o embrião de Hollywood, por exemplo. Por isso podemos dizer que Hollywood já estava contido em Homero (risos). Enfim, todos os recursos estilísticos estão lá. A descrição do escudo de Aquiles, na Ilíada, por exemplo, que ocupa várias páginas, podemos dizer que é a origem do plano-sequência. Assim que podemos afirmar que o meu cinema também deriva directamente de Homero.

Pergunta: Ou seja, o seu cinema está indissociavelmente imbuído ou ligado à grande tradição clássica grega, bebe continuamente dessa fonte. A sua formação clássica foi pois muito importante?

T. Angelopoulos: Sim, mas não vos vou enganar. Precisei de sair da Grécia para que assim fosse. No meu país, na escola, Homero estuda-se de forma mecânica, contabilizando as rimas e os versos, é uma péssima forma de abordagem. Naquela altura, por isso, parecia-me totalmente desinteressante. Foi mais tarde em Paris que redescobri de forma séria a Odisseia e todo o Homero. Foi em Paris que a Odisseia se tornou o livro mais importante da minha vida, pois fala da descoberta de si mesmo e do mundo, que era precisamente o momento que eu estava a viver.

«Deixei de ser um militante e passei a ser um melancólico.»

Pergunta: Paris representa então um momento de crescimento e de aprendizagem?

T. Angelopoulos: Sem dúvida. Paris foi a todos os títulos uma experiência fascinante. Quando acabei o serviço militar, tentei estudar Direito, mas não era bom aluno. E entretanto, apaixonei-me pelo cinema. Mas na Grécia era difícil estudar. Por isso decidi ir estudar cinema para Paris. Fui de mãos vazias. Fui conhecendo pessoas, foi tudo muito casual. Através do Cônsul grego, que era um amante da literatura, consegui um trabalho numa loja de tapetes. E comecei a frequentar a Cinemateca, que foi a melhor escola de cinema que tive. Foi efectivamente um período maravilhoso da minha vida. Um período de liberdade, de esperança e entusiasmo, de joie de vivre. Os melhores anos da minha vida.

Pergunta: E portanto o seu cinema, a sua idiossincrasia, é fruto dessa experiência?

T. Angelopoulos: Quando cheguei a Paris, nos anos 60, era uma época muito produtiva para o cinema, um período muito político, em que tudo era político. Fazer um filme era um acto político. Jorge Luis Borges quando lhe perguntaram: «para que escreve?», respondeu: «escrevo para mim mesmo, e para os que me são queridos». Isto na época dos anos 60 ninguém o dizia. Ninguém dizia «faço filmes para mim». Era um período demasiado político.
A maioria dos cineastas desse período passaram por Brecht. Mas há que ver que as peças de Brecht em si mesmas são mais dramáticas que as suas representações em cena, claramente mais politizadas. Há uma dramaturgia muito forte e elaborada em Brecht que às vezes se tende a obviar. Seja como for, eu passei de Brecht a Aristóteles, e à sua definição de Tragédia. [Angelopoulos cita em grego e traduz ele próprio, ao francês]: «a tragédia é a imitação de algo importante e perfeito, e tem por objectivo a catarse». Voltei assim a encontrar durante a minha estada em Paris uma referência que vinha do meu passado nacional e a que na Grécia não conhecera de forma relevante. Brecht ficou desta forma para trás, mas preencheu-me o pensamento, igualmente. Antes era ideologicamente de esquerda, depois tornei-me emocionalmente de esquerda. Deixei de ser um militante e passei a ser um melancólico da esquerda. A melancolia é a dignidade do sentimento.

«A actualidade passa na televisão. O cinema serve para debater temas mais intemporais.»

Pergunta: Para finalizarmos a conversa, comentemo-nos qual pensa ser a actualidade do seu cinema?

T. Angelopoulos: O termo actualidade tem um alcance restrito. Uma pessoa é actual para si mesma, possivelmente aquilo que pensa e comunica não é sentido como actual por outras pessoas, em particular pelas gerações mais novas. Por isso, não me preocupa tanto a questão. A actualidade passa na televisão. O cinema serve para debater temas mais intemporais. Enfim, no cinema fazemos o que podemos. Há sempre lugar para a melancolia, mas ela é justa. Porque a vida nem sempre é alegre. Há momentos difíceis. Como já lhe falei, há muitas pessoas da minha geração que ficaram traumatizadas com a guerra. Uma vez, no Japão, fui visitar Nagisa Oshima, que estava doente. O mais preponderante cineasta político japonês, embora claro, nem todo o seu cinema seja necessariamente político, fez filmes extraordinários, mas nota-se-lhe que sofreu muitíssimo o trauma da guerra. Agora, e é assim que vejo as coisas, fazer um filme é um grande momento de prazer e de reconciliação com a vida. Nesse sentido, tenho a dizer que o cinema não é a minha profissão: é a minha vida.

* compilado, seleccionado e redigido por Alexandre Nunes de Oliveira

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